O Filme “A Tabacaria”, recentemente disponibilizado nas plataformas de streaming de TV e web, coloca Freud como coadjuvante de uma história de amadurecimento de um jovem, no período pré Segunda Guerra Mundial, mas é pura teoria psicanalítica na maior parte de suas cenas, repletas de símbolos interpretativos.
Édipo, o complexo, está presente no filme desde o início quando mostra a forte relação do jovem Franz, de 17 anos, com sua mãe e também nas sucessivas interdições dos “pais” que se apresentam a ele. Os sonhos, outra marca na psicanálise, dominam também a maior parte do longa e se misturam com a realidade do jovem aprendiz da tabacaria que dá o nome ao filme (do título original em alemão “Der Trafikant”). E, claro, destacam-se os charutos, que estão intimamente ligados à figura do pai da psicanálise.
Um dos principais méritos do longa, dirigido pelo austríaco Nikolaus Leytner, é o de retratar Freud como uma figura mais humana e menos mítica – simples, atencioso e falível – que a aproxima das fidedignas biografias e o distancia da imagem estereotipada do senso comum (que o coloca, muitas vezes, como uma mistura de arrogância e frieza). Mérito também da grande interpretação do ator suíço Bruno Ganz, em um dos seus últimos trabalhos antes de sua morte em fevereiro de 2019.
Nas profundezas do inconsciente
Não é por acaso que o protagonista Franz aparece desde a cena inicial até os momentos finais mergulhado em um grande lago. A água representa, psicanaliticamente, nosso inconsciente que mergulhamos em sonhos e fantasias diurnas, transbordando desejos (realizados ou reprimidos) e outros signos latentes a serem desvendados. A água é também, segundo as tradições judaica e cristã, a origem da criação, da fertilidade – e, assim, não é por acaso que surge a cena de Franz encolhido como um feto num barril. É nessa água profunda que o menino, da região de Attersee-Attergau, mantém forte relação simbiótica com a mãe, preso ainda a uma mal resolvida fase edipiana, já que não há um pai para ameaçá-lo na castração (simbólica, vale lembrar os desavisados).
Há sim, no início, um elemento masculino, o namorado da mãe, a desafiar esse Édipo em pleno ato sexual sob uma árvore, mas que é impedido, em seguida, por um raio fulminante durante uma tempestade, quando este vai tomar um banho no lago, momentos antes de Franz abandonar a água e se abrigar em casa. Sem o namorado para ajudar nas despesas, a mãe exige que o filho vá trabalhar em Viena como aprendiz de um ex-amante. Incomodado de largar a mãe, Franz se esconde mergulhado num barril d’água na companhia de um rato morto (na simbologia possível da relação sexual “suja”, que o repugna, entre a mãe e o namorado da mãe). Há aqui também a hipótese metafórica da culpa de um desejo inconsciente de Franz: o desejo pela morte do seu desafiante do amor materno, que é claramente evidenciada posteriormente em uma mensagem da mãe, eximindo o “lago” (ou o filho) pelo acidente fatal do raio (que supostamente deveria atingir ao jovem e não ao namorado).
Curiosamente, essas interpretações simbólicas são apenas propostas ao espectador a cada cena onírica e não há tal facilidade didática nem nos diálogos com Freud, como havia, por exemplo no filme “Spellbound”, de 1954, (“Quando Fala o Coração”, em português) no qual o psicanalista fictício de Alfred Hitchcock emulava o pai da psicanálise interpretando sonhos. Dá-se a entender, portanto, que não é um filme concebido para leigos da psicanálise, mas sim para analistas e pacientes, habituados à elaboração simbólica. É verdade que há imagens mais fáceis de interpretação, como a do sonho com o dono da tabacaria, Otto, caminhando, sem muletas, com a perna que tinha perdido na guerra, sugerindo uma visão premonitória de Franz da morte de seu tutor nas mãos dos nazistas da Gestapo.
Em outro sonho, há uma evidente condensação de cena diurna com os desejos sexuais de Franz. Surge o teatro de fantoches que ele havia assistido durante o dia, mas tendo como palco a janela da casa de sua mãe (novamente o complexo) com um dos bonecos representando a garota que ele conheceu (Anezka) durante o dia e a fala maliciosa que ela proferiu na dança “colada” de sedução (“Sinto algo lá embaixo”). Novamente, a libido e Édipo (casa da materna) transbordando em seu inconsciente. O teatro em sonhos, aliás, segundo Carl G. Jung, “é a vida na forma de imagens, um instituto psicoterapêutico onde os complexos são encenados”.
Aranha ameaçadora
Em contrapartida, é preciso conhecer um pouco da obra freudiana para criar hipóteses sobre a aranha que aparece para Franz em vários momentos do filme – até no momento de sua masturbação. Freud descreveu a imagem aracnídea, em corroboração com a tese do discípulo Karl Abraham, como “o símbolo da mãe fálica que o homem teme, pelo receio do incesto materno” (“Revisão da Teoria dos Sonhos”, volume 22 das Obras Completas). Jung, por sua vez, classificou a aranha como símbolo da “mãe terrível” que assombra e aprisiona o homem no inconsciente em ambivalência à figura amorosa materna que o liberta. Outra interpretação psicanalítica da aranha no centro da teia é de símbolo da introversão e do narcisismo, da “absorção do ser pelo seu próprio centro”, segundo descreveu Marie-Nathalie Beaudoin.
Refém desse forte complexo materno, Franz começa a adquirir sua autonomia quando tem a ajuda de dois “pais”: o velho Otto, dono da tabacaria (e ex-amante de sua mãe) e o próprio Freud. Eles o apresentam ao mundo dos homens por meio das responsabilidades no trabalho e, principalmente, ao incentivá-lo ao relacionamento com sua primeira paixão, a bela Anezka. Esta parte do filme, por outro lado, pode fazer psicanalistas torcerem o nariz ao mostrar um Freud conselheiro, quase um coach de relacionamentos amorosos. “Vou te passar três prescrições. O primeiro é para sua dor de cabeça: pare de pensar no amor. A segunda é para sua dor de estômago e sonhos perturbadores: deixe uma caneta e papel ao lado da cama e anote seus sonhos, assim que acordar. A terceira prescrição é para a dor no coração: vá atrás da garota ou esqueça-a”, diz Freud ao jovem.
Ok, nunca cabe ao psicanalista dar conselhos, porém pouparemos o autor da história do filme, já que Franz não se mostra um típico paciente de divã – apesar de seu desejo de ser –, mas sim um amigo que Freud quer ajudar, seja em passeios pelas ruas de Viena ou nos intervalos das conversas sobre charutos na tabacaria. E não parecem ideias tão estranhas a Freud. A segunda “prescrição” de Freud – a anotação de sonhos – faça-se justiça, é parte eficaz do processo analítico e que o jovem vendedor da tabacaria do filme não só executa com disciplina, como chega até a colar as folhas de papel na vitrina da loja, como poesias, intrigando a quem passava por lá. No entanto, a anotação de sonhos para a elaboração efetiva, na vida real, exige o “outro”, a escuta qualificada do analista. A única exceção foi a de autoanálise do próprio Freud quando ainda criava sua teoria e que, mais tarde, concluiu a necessidade do Outro no processo analítico completo.
Iniciação masculina
Motivado por Freud, Franz insiste na conquista da bela Anezka até conseguir sua tão sonhada noite de prazer, orientado pela experiente amada. Mas não se contenta apenas com a faceta Lilith, de puro prazer, que Anezka o proporciona. Na sua idealização narcísica de garoto inexperiente, ele a quer como uma Eva, uma companheira para toda a vida – desejo contrário ao de Anezka, uma dançarina de striptease, sem interesse de compromisso sério. Uma borboleta morta na rua, quando ele a surpreende com outro homem, é uma interessante analogia de uma pulsão de vida transformadora, de seu amadurecimento sexual, e uma pulsão mortal de ódio da decepção amorosa. Mais tarde, Freud consola o jovem ao dizer que a libido “é responsável pela alegria e pela dor”. O próprio analista admite ter superado sua libido “há séculos” por causa da idade e, providencialmente, Franz sonha na mesma noite com Freud nu em um bote furado no lago e largando o seu inseparável charuto no fundo das águas.
De pai para filho
A única oportunidade que Franz tem de se apropriar do divã de paciente é quando ele vai até Freud para presenteá-lo pela última vez com os raros charutos cubanos Hoyo de Monterrey. É o momento do filme que coincide com a histórica saída de Freud e família de Viena, em junho de 1938, diante da aproximação da ocupação do país por Hitler. Antes, um adendo: impossível não associar o “havana” com a simbologia de poder fálico quando, anteriormente, Franz lê para Freud o rótulo da caixa: “Colhidos por homens valentes e enrolados à mão com ternura por lindas mulheres em suas coxas”.
Naquele instante, no consultório, não haveria uma habitual sessão de análise; Freud oferece um dos charutos para que eles, juntos, apreciem daquele tabaco tão especial e raro. “Nunca tentei”, admite Franz. “Novos mundos são criados apenas por tentar”, responde Freud, acendendo o charuto. Vê-se ali o pai levando o filho pela última vez ao mundo adulto, autorizando-o ao amadurecimento para a vida. E é, a partir daquele instante, que Franz desiste de fugir de volta à casa da mãe (de seu complexo aprisionante), para assumir corajosamente a responsabilidade de lutar contra a opressão nazista.
Se “A Tabacaria” não se aprofunda na vida do pai da psicanálise, colocando-o como uma coadjuvante de luxo, tem o mérito, por outro lado, de propor ao espectador um belo exercício de imaginação de como pode ter sido a vida desse fascinante personagem da história da humanidade em um período de intolerância e de violência racial, dentro daquilo que ele chamava o “mal-estar na civilização”. E, paradoxalmente, uma época que permitia ainda o amadurecimento de um jovem como manda o curso natural da vida: desde os despertares do sexo e do amor até as consequentes desilusões que o fariam sofrer e, consequentemente, forjar sua alma.
*Fernando Porto Fernandes é psicanalista de abordagem junguiana e escritor. Trabalhou por 30 anos no jornalismo impresso, produzindo textos para jornais e revistas. É autor do livro “Morte, Biografia Não Autorizada” e faz palestras sobre o tema “Pequenos e Grandes Lutos de Nossa Vida”. Contato pelos e-mails: [email protected]