Contra o adoecimento mental pelo medo da sombra da morte, a psicanálise junguiana aponta um caminho transcendente: a partir dos estímulos aos instintos da reflexão e da criatividade
Por Fernando Porto Fernandes*
Mais Eros (amor) e menos Pathos (sofrimento) é o que clama hoje a humanidade. Vivemos há mais de um ano sob uma Umbra Mundi, uma grande sombra sobre o mundo, imposta pelo vírus mortal, que gera um medo constante dentro da psique coletiva. Esta situação, consequentemente, afeta cada mente individual. As milhares de mortes diárias forçam todos a olharem para o abismo por um tempo interminável – um risco, que já alertava Nietzsche, de receberem de volta o inevitável olhar deste mesmo abismo.
E como voltar dessa descida ao inferno coletivo/pessoal para a luz da consciência, na necessária compensação das forças opostas dentro de cada um? Como desviar o olhar das mortes diárias sem deixar de agir com alteridade e, assim, retomar o controle da vida? O caminho está no estímulo aos instintos opositores a este da destruição, para, no final, integrar e equilibrar tal dualidade n a compreesão
Freud dizia que a luta entre Eros (instinto de vida, a outra face do deus mitológico) e Tânatos (instinto de morte) se decide dentro de nós a cada instante. Algumas traduções de obras do criador da psicanálise chamam tal teoria dualista dos “instintos” (do alemão “trieb”) de “pulsões” – e há críticas atuais de especialistas sobre essa liberdade antes concedida com a expressão alemã.
Mas o que importa é que a teoria freudiana, que atualizou dualidade anterior “instintos sexuais x instintos de autopreservação”, consolidou a oscilação impulsiva entre instintos de vida e de morte para a sobrevivência aos acontecimentos que nos afetam (uma reação biológica da espécie que estaria implícita nos comportamentos individuais e coletivos). A tarefa não é nada fácil durante a constante ameaça da doença contagiante e letal, pois o ser humano, na visão junguiana, é, muitas vezes, “possuído” emocionalmente por forças coletivas, em uma espécie de contágio psíquico, já que as pandemias mortais são um tema primordial, arquetípico, comum ao inconsciente da humanidade.
A teoria psicológica de instintos de vida e de morte, faça-se justiça, foi uma inspiração freudiana de outra teoria, criada oito anos antes (em 1912) pela brilhante psicanalista russa Sabina Spielrein, em seu artigo “A destruição como Causa do Devir”, que afirmava estar o ser humano sob o domínio de uma luta interna entre instintos de “procriação” e de “morte”. Sabina estabelecia, ainda, a luta entre o individual e o coletivo, ou seja, o embate entre a psique do Eu (consciente e inconsciente) e a psique da espécie (da coletividade) – contra a autopreservação deste Eu – uma tendência de dissolução e assimilação.
Tanto Freud como Spielrein colocariam, hoje, o adoecimento mental causado pela sombra da pandemia como um direcionamento coletivo para o instinto de morte (ou de Tânatos, o deus mitológico da finitude), no qual as pessoas procuram defender-se do sofrimento por meio de abuso de substâncias psicoativas (drogas, álcool etc), de alimentação compulsiva e, o pior de todos, do negacionismo suicida, como as aglomerações em festas. A situação desse conflito instintivo, Freud chamou, anteriormente a esta teoria, como o conflito entre o princípio do prazer (abusos do corpo e diversão desmedida) e o princípio da realidade (hoje, o confinamento e distanciamento contra a pandemia).
A psicoterapia, então, surge como a alavanca para girar esse maquinário instintivo-psíquico para o outro extremo oposto, do instinto de Eros, de atitudes em prol da vida, um trabalho compensatório para sanar os picos incontroláveis de depressão e ansiedade.
Na psicologia analítica, Carl G. Jung admite tal instinto de morte de Spielrein e Freud, que estaria dentro de nossa tensões dualistas internas “a serviço da autodestruição do indivíduo” (expressão usada em “A Natureza da Psique”, volume 8/2 de OC), mas coloca no lado oposto, não apenas um conceito único do Eros da vida, mas sim a composição de cinco grupos de instintos vitais: fome, sexualidade, atividade, reflexão e criatividade. E qual – ou quais – destes instintos seriam eficientes na balança compensatória da psique contra os impulsos destrutivos da pandemia?
A fome, segundo Jung, é uma expressão característica do instinto de autoconservação. Já a sexualidade, quando não serve ao objetivo principal de conservação da espécie, tem o curso da libido modificado para outros impulsos “suficientemente poderosos”. Um destes, o terceiro grupo de instintos, é o impulso à ação (atividade), que talvez traga ao paciente estímulos bem-vindos como o amor à mudança e ao instinto lúdico (o impulso a viajar, também citado por Jung, estaria incluído não fosse pela interdição pandêmica sobre esse ato desejável).
Apesar da importância dos três primeiros grupos instintuais para a preservação da vida do paciente (que se alinham à pirâmide de necessidades básicas do psicólogo humanista Abraham Maslow), há o quarto instinto junguiano importantíssimo, a ser trabalhado no set terapêutico, que Jung admite nem ser considerado conceitualmente instintivo: a reflexão. “Jamais pensamos que a reflexão tenha sido instintiva, mas a associamos a um estado consciente da mente”, escreveu.
O termo latino reflexio, segundo Jung, significa um curvar-se, inclinar-se para trás, e, usado psicologicamente, indicaria quando o processo reflexivo, que canaliza o estímulo “para dentro” da corrente instintiva, é interrompido por aquilo que ele chamaria de psiquificação (assimilação do instinto a uma estrutura psíquica complexa). Devido à interferência desta reflexão, os processos psíquicos exercem uma atração sobre o impulso a agir (o terceiro instinto anterior) e o desvia para uma atividade endopsíquica (interna), antes de descarregar-se no mundo exterior.
Portanto reflexio é um voltar-se para dentro, tendo como resultado que, em vez de uma reação instintiva, surja uma sucessão de conteúdos ou estados que substituem a compulsividade, em troca de uma certa liberdade e até de uma imprevisibilidade. Para Jung, o instinto de reflexão talvez constitua a riqueza da psique humana.
“A reflexão retrata o processo de excitação e conduz o seu impulso para uma série de imagens que, se o estímulo for bastante forte, é reproduzida a nível externo”, define o mestre da psicologia – uma descrição que lembra o processo de sua famosa técnica de imaginação ativa por trazer resultados “transcendentes”, da ponte inconsciente-inconsciente, por meio da expressão verbal, da manifestação do pensamento abstrato, da representação dramática “ou ainda como feito científico ou como obra de arte”.
Não devemos confundir a reflexão deste processo com uma “sublimação” freudiana, da manifestação artística como mecanismo de defesa; este junguiano se aproxima mais à “sublimatio” do trabalho alquímico na terapia, de trazer e integrar os conteúdos inconscientes à consciência.
Em outras palavras, graças ao estímulo do instinto de reflexão, o processo de nossas reações impulsivas ao stress externo se transforma quase completamente em conteúdos psíquicos, isto é, torna-se uma experiência. É um processo natural transformado em um conteúdo consciente. “A reflexão é o instinto cultural par excellence, e sua força se revela na maneira como a cultura se afirma em face da natureza”, descreveu Jung.
Por último, e não menos importante no processo terapêutico atual, está o estímulo ao instinto da criatividade – apesar de Jung ressalvar que instintos em si não são criativos. “Usamos a expressão instinto criativo, porque este fator se comporta dinamicamente, pelo menos à semelhança de um instinto”, explicou. O psiquiatra preferiu designar a força criativa como sendo um fator psíquico de natureza semelhante à do instinto. E por ser psíquico, do inconsciente e de sua conhecida ambivalência, precisa ser bem trabalhado pelo analista para não reprimir os outros instintos do paciente. “A criação é ao mesmo tempo destruição e construção”, adverte.
Talvez esteja, então, no estímulo dos instintos reflexivos e criativos, de direcionamento de nossa libido (energia psíquica), por meio da escuta analítica e uso de técnicas expressivas junguianas, a tão desejada descoberta da função transcendente – a verdadeira escada segura que liga o consciente e o inconsciente, que nos garante a “subida” do inferno pessoal e também a construção de uma forte resistência interior contra a potente – mas não eterna ou permanente – sombra coletiva.
*Fernando Porto Fernandes é psicanalista de abordagem junguiana e escritor. Trabalhou no jornalismo impresso, produzindo textos para jornais e revistas. Atualmente faz atendimento clínico e é autor do livro “Morte, Biografia Não Autorizada”, com o qual faz palestras sobre o tema “Pequenos e Grandes Lutos de Nossa Vida”. Contato pelo e-mail: [email protected]