Uma crítica do filme Coringa (Joker) sob o ponto de vista psicanalítico
Por Fernando Porto Fernandes
““Você não escuta, não é? Você apenas faz as mesmas perguntas todas as semanas: ‘Como está seu trabalho? Anda tendo pensamentos negativos?’ Tudo o que eu tenho são pensamentos negativos.” A reclamação de Arthur Fleck (o ator Joaquin Phoenix) para uma assistente social burocrática e também desgostosa com o serviço (“Eles não dão a mínima para pessoas como você ou como eu”, responde ela) resume o cerne da jornada catastrófica do personagem, que culminará em sua incorporação inevitável do Coringa (ou “Joker”, no título original do filme em cartaz).
O fatídico destino de Arthur é alimentado por esta falta de uma escuta qualificada que realmente faça tal sujeito, perturbado mentalmente, encontrar um “outro” que acolha sua narrativa e, assim, permita uma esperançosa mudança no limiar entre realidades externa e interna.
Além da busca incessante por ouvidos e olhos acolhedores, Arthur, ainda na frágil sanidade, busca sem sucesso um reconhecimento de um suposto pai que o abandonou (o milionário Thomas Wayne), não por dinheiro – garante ele – mas sim por consideração digna de filho. Outro pai, este idealizado, é procurado por ele na figura de seu ídolo Murray Frank (Robert de Niro), um apresentador de TV – mas que também o “trai”, ao humilhá-lo publicamente. Já no final, como assassino convicto, preso e internado no Arkham State Hospital, Arthur não mostra mais sentimentos de rejeição, mas sim de conformação com a impotência da sociedade de penetrar além das trevas de sua loucura. “Você não entenderia”, diz à médica do sanatório que questiona o motivo da sua risada incontrolável.
Desvendando a mente do Coringa
Questionamentos morais à parte – não há, claro, como defender seu rastro sangrento que se espalha na segunda parte do filme –, é possível buscar aonde de fato desabaram a integridade, a bondade e a sanidade de Arthur Fleck. Sua vida pré-Coringa não barra, em nenhum momento, em uma escuta acolhedora, seja profissional ou não, e a trajetória, durante o filme, caminha para o enfraquecimento de sua persona – na linguagem da psicologia de Carl. G. Jung, a máscara que o ego constrói para o convívio na sociedade – ou, melhor, de uma persona dividida ou fragmentada em duas: do rapaz com distúrbio mental ou neurológico e do palhaço fracassado na arte de fazer rir.
A cada cena, vai aumentando a tensão do espectador para a cisão de um ego, cada vez mais fragilizado, tomado por sua sombra; um monstro perigoso que ameaça derrubar a porta do inconsciente e invadir, a qualquer momento, a realidade externa. É fato, pela lógica psicanalítica freudiana, que a loucura selvagem de Arthur Fleck, fragilmente disfarçada e reprimida (e não escutada e purificada por ressignificação) transbordará em sintomas cada vez mais intensos para derrubar as defesas do vulnerável sujeito, com sinais muito mais alarmantes do mal que está por vir.
Riso patológico: sofrimento psíquico
O riso descontrolado e involuntário do personagem causa reações às pessoas que presenciam a crise, que o repreendem ou até o agridem. É o que a psicopatologia classifica como Incontinência Afetiva, que consiste de uma perda da regulação, do controle emocional. Esse riso patológico ocorre em consequência a estímulos apropriados, mas é sempre desproporcional; o indivíduo não consegue conter de forma alguma suas reações afetivas. A resposta afetiva ocorre geralmente em consequência a estímulos apropriados, mas é sempre muito desproporcional.
Segundo o professor Paulo Dalgalarrondo, titular do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp, a incontinência afetiva é considerada uma forma de hiperestesia emocional, indicando exagero e inadequação da reatividade afetiva. Assim como a labilidade, pode ocorrer em quadros de depressão, mania, estados graves de ansiedade e esquizofrenia. Esta associação patológica ao riso incontrolável nos dá uma pista a mais sobre o agravamento psicótico de Arthur no filme (somando-se às alucinações de outras cenas). No entanto Dalgalarondo ressalva que podem estar associados a quadros psico-orgânicos como encefalites, doenças degenerativas do SNC,
Nesse sentido, “o riso patológico e o choro patológico ocorrem como episódios imotivados de um choro e/ou riso abrupto, de curta duração, de forma convulsiva, associados geralmente à paralisia pseudobulbar vascular, à esclerose lateral amiotrófica, à esclerose múltipla ou às lesões vasculares bilaterais ou difusas (Poeck, 1985)”. Essa hipótese abre também a investigação à medicina neurológica e pode ser uma “crise de epilepsia gelástica”, segundo explicou, em entrevista à BBC News, Francisco Javier López, coordenador do grupo de estudo sobre epilepsia da Sociedade Espanhola de Neurologia. É um tipo muito raro de convulsão na qual a causa mais frequente desse tipo de epilepsia é um pequeno tumor no hipotálamo chamado de hamartoma hipotalâmico. As crises gelásticas, explica López, representam um estresse adicional, porque se alguém está consciente e ri em situações inoportunas, isso pode causar mais sofrimento. Esse tipo de condição geralmente é controlado com drogas antiepilépticas.
Essa incompreensão das pessoas com este distúrbio e com outros sintomas patológicos do personagem (além das alucinações, há episódios de delírios psicóticos, o falso juízo de valor) demonstram também o preconceito que a sociedade ainda tem com indivíduos com transtorno mental. O filme, aliás, se passa na Nova York dos anos 70, auge não só nos EUA como no Brasil, da chamada indústria da loucura, do lucro com internações. Uma sociedade extremamente anestesiada do espírito de alteridade – que, propositadamente, é retrato do mundo atual –, fragmentada pela desigualdade social, regida por um Estado que trata como párias pessoas com transtornos psíquicos.
“A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não a tivesse” – uma das frases mais simbólicas do Coringa. O filme nos leva a deduzir que Arthur tem um passado de internações no hospital psiquiátrico Arkham State e insinua o quanto estas internações, com tratamentos e ambientes condenáveis, pioraram sua saúde mental. Se, contar os traumas por abusos físicos dos namorados da mãe (que também demonstra traços de hipomania nas poucas cenas que aparece).
Psicose ou psicopatia?
Em alguns momentos, o personagem se mostra esquizofrênico por suas alucinações visuais e auditivas com a vizinha (sua presença real é derrubada por detalhes finais, para os espectadores mais observadores) ou no delírio de sentir adorado por seu apresentador de TV favorito (que mostra exatamente o contrário, na realidade). Certamente que, no mundo real, fechar um diagnóstico de esquizofrenia dependeria de observação médica de três ou mais sintomas em um prazo mínimo de 15 dias. Na tela do filme, a psicose se apresenta em cenas memoráveis, mas, em outros momentos, principalmente na ascensão de Arthur como o assassino Coringa, apresenta uma psicopatia clássica, sem culpa ou ressentimentos – até mesmo no matricídio – nas vinganças contra supostos traidores – uma banalidade no ato de matar, sem o “sentir” aparente.
Um olhar de Jung para a loucura do Coringa
Mais do que um distúrbio neurológico, o riso incontrolável – descompassado de seus sentimentos, do até então inofensivo palhaço de rua, aspirante a comediante de stand up –, parece, sob a ótica da psicologia analítica, ser provocado em sua psique por um arquétipo obsessor como o de Éris, a deusa grega da discórdia, empurrando o pobre Arthur para situações de confronto com pessoas violentas ou abusadoras.
Ou, mais adequado ao caso, impulsionado dentro da mesma psicologia arquetípica pela figura do Trickster, o prega-peças e gerador de caos da mitologia indígena, estudado pelo pesquisador Karl Kerényi e associado por Carl G. Jung ao Louco do tarô (também coringa no baralho de jogo) e à faceta transgressora do deus grego Hermes. Jung vai mais longe e coloca o mito Trickster/Louco como a personificação do arquétipo da sombra do inconsciente.
Narcisismo de vida e de morte
Voltando ao filme, é também emblemática a sua relação com o revólver adquirido para se defender dos delinquentes que o atormentam na rua. Em um tiro desajeitado dentro do apartamento – que atrai a atenção e provoca a bronca de sua mãe (doente no presente, possessiva e abusadora no passado) – Arthur age como uma criança que descobre um brinquedo poderoso. Ele parece tomar, então, a arma como um poder fálico para a retomada de sua potência narcísica – que realmente nunca teve, diante da ausência do modelo de pai para espelhar-se, ser confrontado e interditado, como manda o curso natural da fase complexual edipiana teorizada por Freud.
A ingenuidade inconsciente de portar a arma para afirmação fálica, na rotina de seu trabalho, resulta na absurda inconsequência de derrubar o revólver do uniforme de palhaço em plena apresentação beneficente para crianças com câncer em um hospital. É, nesta simbólica cena, que desponta a persona enfraquecida de Arthur em busca da pulsão narcísica de vida, de “salvar” as crianças em estado terminal e, consequentemente, salvar a si mesmo. No entanto, novamente, na lei da ambiguidade psíquica, o cair denunciador da arma revela o outro lado da balança de Arthur, que pesa mais: a pulsão de morte (que o analista lacaniano André Green classificou brilhantemente como narcisismo negativo ou de morte, que não aspira ao fortalecimento do Eu, mas à sua redução “ao zero”). É o sintoma sabotador do sombrio Coringa batendo na porta novamente.
Indivíduo e sociedade
O que se estabelece aqui é muito mais sobre essa figura ambígua Arthur/Coringa; o embate entre persona e sombra. E o diretor do filme, Todd Phillips, confessou publicamente ter deixado pontos cegos na história, para dar margem a diferentes hipóteses.
Na realidade, o arquétipo do Louco está nos atos ambíguos do dia-a-dia de cada ser humano: entre atos de amor e ódio, de força e fraqueza, que nos surpreendem positivamente em nossos gestos nos relacionamentos e intuições, assim como nos prega peças em súbitos equívocos e pensamentos proibidos.
Não à toa, o Louco se mostra também como o mito do andarilho das cartas do tarô, sem um número definido, característica de seu mistério. Ele “caminha para a frente, mas olha para trás, ligando assim a sabedoria do futuro à inocência da infância”, escreve a analista junguiana Sallie Nichols. Se ele é uma sombra da qual o ser humano deseja se afastar, é, ao mesmo tempo, a esfinge a ser desvendada, reconhecida e ressignificada, para avançarmos além do mundo dos opostos, seguindo a árdua e necessária jornada da individuação.
*Fernando Porto Fernandes é psicólogo e escritor. Trabalhou no jornalismo impresso, produzindo textos para jornais e revistas. Atualmente faz palestras, atendimento clínico e é autor do livro “Morte, Biografia Não Autorizada”. Contato pelo Instagram @fernandofernandes_psicanalista ou e-mail: [email protected]
Fernando, que prazer ler a análise que você escreveu !
Fernando, que prazer ler a análise que você escreveu !