Esqueça os significados supersticiosos e literais de almanaques populares. Os sonhos abrem a porta para o inconsciente e, consequentemente, para nossa evolução na vida.
René Descartes teve o chamado “Grande Sonho” – que continha elementos simbólicos como tempestade, fruta redonda e centelhas de fogo – e este cumpriu um papel decisivo no seu desenvolvimento reflexivo em relação à religião e aos problemas científicos da época, dentro de suas impactantes teorias do pensamento. Freud classificou o sonho como “de cima”, de elevação à consciência, e a analista junguiana Marie-Louise Von Franz acrescentou ser um sonho arquetípico, “uma mensagem suprapessoal”.
Já o filósofo Sócrates compôs o hino a Apolo por causa dos sonhos recorrentes de uma voz que falava: “Faça música e trabalhe”, porém, séculos mais tarde, Carl Jung acreditava que o grego se equivocara por ter sido literal e racional demais e não os tratar como sonhos de compensação, de avisos do inconsciente para focar mais suas ações em seu lado emocional. Outro sonho de Sócrates, de uma mulher linda e nobre que vem até ele, também foi mal interpretado pelo filósofo como bom presságio e que o navio que se aproximava não trazia as autoridades para condená-lo. Mas Von Franz interpreta-o como aviso de que sua alma iria buscá-lo para o mundo do além, dos mortos.
Os sonhos citados são apenas alguns dos exemplos da importância das mensagens simbólicas do mundo onírico não só no caráter preditivo – que é normalmente raro – mas também no desenvolvimento interior de cada ser humano em qualquer etapa da vida. Não é à toa que a psicoterapia analítica, com mais ênfase na linha de Carl G. Jung, utiliza a elaboração dos sonhos como um recurso importante para a obtenção de autoconhecimento para seus clientes.
Tanto os psicoterapeutas freudianos como os junguianos dão importância à interpretação dos sonhos, mas há diferenças nas concepções. Jung chegou a concordar com Freud de que os sonhos são fenômenos naturais e propositados, “a expressão espontânea e não disfarçada dos processos inconscientes” – como lembrou o terapeuta junguiano Robert H. Hopcke. No entanto, Jung discordou da tese de Freud de que a razão da dificuldade de o paciente descobrir totalmente o significado do sonho fosse a imposição de um “disfarce” censor de desejos inaceitáveis e proibidos. Jung achava que os sonhos, na maioria dos casos, eram compensatórios para a visão consciente do ego, aquilo que pode ser perdido dentro da consciência, mas ressalvou que havia exceções de sonhos fora dos cinco sentidos, que antecipam uma direção ou desenvolvimento psicológico.
Para Jung, as dificuldades de interpretações oníricas se devem à natureza inconsciente dos sonhos que não se expressam na linguagem verbal e literal do estado de vigília, mas sim na linguagem dos símbolos. O desafio junguiano é sempre o de aprender tal linguagem do inconsciente, dos símbolos de importância à vida psíquica do analisando assim como as imagens arquetípicas (tanto do inconsciente pessoal como do coletivo).
O que há de comum entre as análises freudianas e junguianas dos sonhos é que elas rechaçam os métodos populares de interpretações que buscam a decodificação geral das experiências oníricas, de forma puramente geral ou reducionista, mas sim priorizam a interpretação do próprio sonhador. Assim, as duas linhas buscam a associação de ideias unicamente do analisando, a individualidade simbólica de cada elemento para o paciente. Semelhante à anamnese de um médico que investiga a dor de um paciente, o analista inicia o trabalho com perguntas detalhistas. Em um sonho com um animal, por exemplo, pede-se para descrever: Qual seu tamanho? Sua cor? Está em movimento ou parado?
Após a compreensão dos detalhes do sonho, vem então o trabalho de associações pessoais que revelam a natureza do complexo psíquico: Já viu algum animal deste tipo em sua vida? Qual é o sentimento em relação a ele – temor ou carinho? Neste ponto, as linhas freudianas e junguianas estão juntas no processo – lembrando a procura da linha de Freud pelo “disfarce” e pela censura. A diferença maior é que Jung propunha descascar outras camadas do complexo. Além das associações pessoais (onde apareceu a imagem na vida do paciente, o que ele sente a seu respeito etc), a amplificação junguiana pode buscar, na sequência, a camada intermédia do complexo de imagens culturais – como a convenção da cor branca para o nupcial ou da luz vermelha para o símbolo de “pare” (do semáforo), por exemplo. Mas, claro, o sonhador deve manifestar afinidade com estas convenções simbólicas para a análise ir adiante.
Finalmente, a última camada a ser “descascada” do complexo é análise dos paralelos arquetípicos – mitos, lendas e contos populares semelhantes ou idênticos – para entender os níveis mais profundos dos sonhos. Mas, vale ressaltar novamente, zela-se pelo extremo cuidado dos junguianos de evitar o chamado reducionismo arquetípico, de querer substituir as tensões do processo de individuação da pessoa sonhadora/paciente por fascinantes e românticas amplificações arquetípicas. O que vale sempre é o mundo psíquico particular do sonhador.
O desafio do diagnóstico
Sempre a levar em conta o cuidado para não entrar na armadilha determinista, de interpretações gerais dos sonhos, é possível ter um norte, para maiores amplificações arquetípicas. E é quando aparecem as conclusões dos grandes nomes da psicanálise. Eles não deixaram de divulgar elementos oníricos que se repetiam e coincidiam nas neuroses diagnosticadas em seus pacientes. Para o psiquiatra e analista James Hall, por exemplo, os sonhos podem ser úteis para estabelecer distinções entre neurose, psicose e problemas caracterológicos ou orgânicos, “que podem se apresentar como uma sintomatologia parcialmente sobreposta ou coincidente”.
Casos de sonhos de pacientes de Hall, principalmente os de depressões psicogênicas (provocadas por causas psicológicas), trouxeram a ele clareza analítica, por estarem frequentemente relacionados a uma raiva que não se manifestava no estado de vigília do ego. Dentre os vários casos divulgados, o psicanalista enfatiza o de sua cliente que vivenciava um misto de cólera e depressão, na vida desperta, causado pelo envolvimento de seu marido com outra mulher e, consequentemente, provocava sonhos frequentes de ataques de insetos e répteis. Quando a sua paciente assumiu uma posição decisiva em relação ao marido, a depressão diminuiu e, mesmo sonhando semanas depois com serpentes venenosas, elas se mostravam distantes e nada ameaçadoras.
Tais elementos não-humanos do caso da mulher depressiva podem ser vistos como sua própria agressão reprimida no estado de vigília e que precisavam vir à tona como sentimentos verdadeiros. Mas, vale repetir novamente, cada caso é um caso, e deve-se evitar as associações popularescas de sonhos de cobras com traição, tão frequentes em revistinhas de bancas.
Hall também observou um número de sonhos que se repetiam em pacientes com alta ansiedade em três padrões: 1) sonhos de não estar preparado ou atrasado para um exame escolar ou profissional; 2) de perseguição por uma pessoa ou criatura; 3) perigo físico ao ego onírico por catástrofes naturais (incêndios, maremotos etc.). São padrões que o analista elencou mas, repete-se a advertência, não são únicos ou definitivos. E quando esses pacientes elaboram tais sonhos repetitivos no set do psicanalista, evoluindo à luz da consciência (sim, a psicanálise não é nenhum lenga-lenga, mas muito eficiente nisso), é possível que as próximas experiências sonhadas sejam transformadoras, como um homem que se aproxima do “monstro” e, ao chegar à luz, a criatura se torna um inofensivo ratinho, ou a mulher que enxota com a vassoura o jacaré feroz da cozinha e ele se transforma em um dócil cãozinho. Curiosamente, tais transformações oníricas são semelhantes às de contos de fadas. E não é uma coincidência.
Freud e Jung: o sonho da ruptura
Por fim, gosto de lembrar do importante sonho que Carl Jung teve e que previu o início de sua ruptura com Sigmund Freud. Jung sonhou que entrou numa casa grande e complexa e, ao chegar a um quarto de estilo gótico, desceu mais até uma adega com um buraco retangular. Pegou uma lanterna na mão e explorou o buraco, descendo por mais escadas até chegar à outra adega antiga, estilo romano, com outro buraco (!), onde via um túmulo arqueológico cheio de cerâmica, ossos e crânios pré-históricos. Ao analisar, Freud disse a Jung que o sonho significava que o colega queria ver certas pessoas mortas e enterradas em duas adegas. Jung não se viu satisfeito com a análise de Freud e passou a ver nos símbolos oníricos – peças e ossos de um mundo antigo enterradas por baixo de uma adega, mais profunda que outra adega superior – um chamado para um estudo “mais profundo”, além do inconsciente pessoal de Freud. A base destes estudos foi o livro alemão “Mitologia e Simbolismo”.
O estudo incessante das diferentes mitologias o levou então a escrever um livro que envolviam essas “adegas inferiores”, que uniam fontes diferentes da história da humanidade (mitos) e que apenas mudavam de nomes em cada povo ou cultura, como a grega, a nórdica ou a africana, mas que traziam dramas semelhantes da vida humana (arquétipos). Este sonho, que precedeu outros mitológicos, inspirou seu livro sobre o conceito de inconsciente coletivo, que trouxe ainda o ponto polêmico de que “a libido está dividida e produz aquilo que reprime a si mesmo” (em outras palavras, a libido como energia psíquica em tudo) – ideia chamada por Freud de “blasfêmia” por ir contra a visão reducionista de libido – o impulso único na sexualidade, inclusive em sua ideia de Deus.
Daquele momento em diante, os dois brilhantes pensadores seguiram caminhos diferentes na análise da mente humana, sucedidos por outros teóricos. Mas os sonhos nunca deixaram de ser importantes elementos das duas escolas para explorar o inconsciente – seja pessoal ou coletivo.
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Fernando Porto Fernandes é psicanalista de abordagem junguiana e escritor. Trabalhou por 30 anos no jornalismo impresso, produzindo textos para jornais e revistas. É autor do livro “Morte, Biografia Não Autorizada” e faz palestras sobre o tema “Pequenos e Grandes Lutos de Nossa Vida”. Contato pelos e-mails: [email protected] ou [email protected]