Histórias que curam a alma

Muito mais do que um filme adolescente sobre enfrentamento precoce ao medo e ao luto, “Sete Minutos Depois da Meia-Noite” mostra brilhantemente o poder redentor das histórias e mitos na formação da personalidade

 filme Sete Minutos Depois da Meia-Noite
filme Sete Minutos Depois da Meia-Noite

“Histórias são criaturas selvagens”. A chamada no cartaz do filme “Sete Minutos Depois da Meia-Noite”, dirigido pelo espanhol J.A. Bayona (de “O Impossível” e “O Orfanato”), define bem o arco central do drama, assim como o título original em inglês “A Monster Calls (“Um Monstro Chama” ou na versão literária: “o Chamado do Monstro”).

À primeira vista, corre o risco de ser tratado apenas como mais um longa de fantasia sobre o amadurecimento precoce de uma criança diante das duras dificuldades da vida e da repentina aliança com uma criatura fantástica (como os recentes “Meu Amigo, o Dragão” e “O Bom Gigante Amigo”). Ledo engano, há uma complexidade latente que o torna menos recomendável para crianças menores e mais sensíveis, mesmo que acompanhadas dos pais. Não é só questão de entendimento da trama, mas sim de temas fortes não tão recomendáveis para famílias que o confundam com uma leve aventura juvenil.

Dado o aviso, vamos ao que interessa: o filme de Bayona é uma obra tocante, carregada de emoções e símbolos, que não deixará nenhum espectador indiferente. Mas não há nada gratuito ou piegas. Nossa inteligência nunca é menosprezada graças à proposta de tratar de forma franca e direta o difícil amadurecimento de um adolescente frente a uma grande perda inevitável – a de sua mãe, em processo terminal de câncer. E a “cura” patológica desse garoto surge, em um estado limítrofe de fantasia-realidade, em forma de um monstro-árvore, que o obriga a ouvir suas histórias a cada noite, até que ele chegue à sua própria verdade – mesmo que ela seja a mais dura possível.

Connor O’Malley (Lewis MacDougall) precisa aceitar o estado crítico da mãe (Felicity Jones), fragilizada pelo câncer
Connor O’Malley (Lewis MacDougall) precisa aceitar o estado crítico da mãe (Felicity Jones), fragilizada pelo câncer

Contos e mitos no divã
Não é novidade que histórias, ou melhor, contos-de-fadas, com monstros e heróis, são levados aos sets terapêuticos para ajudar na compreensão de traumas infantis – e também de adultos. E é esse o caminho proposto por “Sete Minutos Depois da Meia Noite” para salvar a integridade psíquica do garoto Connor O’Malley (Lewis MacDougall, de “Peter Pan”), de 12 anos. Ele precisa lidar sozinho com o estado crítico da mãe, fragilizada pelo câncer (Felicity Jones, de “A Teoria de Tudo” e de Star Wars “Rogue One”) e, ao mesmo tempo, resistir ao convívio forçado com outra Anima, a avó rígida e fria (Sigourney Weaver), pedir ajuda para um pai fraco e ausente (Toby Kebbell, de “Quarteto Fantástico”) e fugir das surras dos valentões de escola.

Figura imperativa do filme é o monstro-árvore gigante (voz de Liam Neeson), que representa aqui o arquetípico contador de histórias, da tradição oral iniciada nos primórdios da humanidade. Uma tradição geradora de mitos e símbolos, elementos fundamentais para formação da psique humana e do sonhado processo de individuação, segundo prega a escola analítica de Carl G. Jung. Bayona não esconde essa fascinação pela jornada mitológica presente no livro adaptado de Patrick Ness – o best-seller homônimo A Monster Calls. “Eu me senti inspirado também a pensar sobre por que nós contamos histórias, e comecei a ler livros sobre mitologia de especialistas como Joseph Campbell”, contou o diretor, durante a divulgação do filme.

O monstro pessoal de Connor, que alimenta sua fantasia todas as noites, remete também ao elemento psicanalítico da Sombra, presente tanto no inconsciente coletivo como no pessoal. É o monstro escondido dentro de cada um, dos instintos primários e contrários à moral, reprimidos pelos padrões sociais. Ele se torna assustador para Connor por representar o reflexo de suas verdades inconfessáveis – uma delas é a chave-raiz das neuroses sintomáticas do garoto – mas, ao mesmo tempo, se se apresenta como arquétipo do Velho Sábio, que o guia para fora das trevas interiores.

O monstro de Connor remete também ao elemento psicanalítico da sombra
O monstro de Connor remete também ao elemento psicanalítico da sombra

Nesse processo terapêutico forçado, Connor é incentivado pelo monstro-árvore a colocar para fora seu impulso destrutivo, extravasando a raiva que o consome por dentro diante de tanta impotência aos obstáculos da vida – a força instintiva e inconsciente que Freud classificou como pulsão de morte. E, gradativamente, a cada história nova contada, a faceta sábia do monstro mostra que há verdades ocultas que não enxergamos como autopunição. Em um mundo de dualidade, temos de integrar também sombra e luz para chegarmos à ampliação da consciência – dirão os analistas de plantão. “O monstro também representa aquela parte da sua personalidade com a qual você ainda não fez as pazes”, completa o diretor Bayona.

Mais do que complexos paterno e materno a resolver, Connor enfrenta dores e perdas para uma redenção necessária: da transição precoce de um garoto para a vida adulta. Além de tantas riquezas de conteúdo em seu roteiro, não há como não mencionar as qualidades técnicas do filme: a impecável arte de animação das histórias narradas (baseadas nos desenhos do ilustrador do livro original, Jim Kay), o trabalho cuidadoso de construção do monstro (com pé, cabeça e mãos gigantes, de movimentação mecânica, para dar realismo às cenas) e um elenco misto de jovens e veteranos.

Assista ao trailer:

Fernando Porto Fernandes é psicanalista de abordagem junguiana e escritor. Trabalhou por 30 anos no jornalismo impresso, produzindo textos para jornais e revistas. É autor do livro “Morte, Biografia Não Autorizada” e faz palestras sobre o tema “Pequenos e Grandes Lutos de Nossa Vida”. Contato pelos e-mails: [email protected] ou [email protected] 

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