A fascinante série mostra as consequências destrutivas de separar as memórias da consciência da vida pessoal das reminiscências da persona no trabalho. Faltou combinar com a psique do indivíduo.
Por Fernando Porto Fernandes*
“Alexa, faça-me feliz”, pedi. “Não tenho resposta para isso”, respondeu-me secamente a assistente virtual mais popular do momento. Pelo menos, desta vez, ela foi franca e direta, sem rodeios de frases motivacionais ou citações filosóficas. Desde que o poderoso mundo tecnológico tomou as rédeas de nossas vidas, prometendo a tão almejada felicidade, precisamos dessa mea culpa hi-tech sincera de que, apesar de nos proporcionar prazer e conforto, as inovações não nos entregaram a Shangri-lá sonhada por todos. Não evitaram também os efeitos colaterais durante a busca pela perfeita e harmônica díade lar/trabalho.
As clássicas demandas de “feliz no lar e estressado (a) no trabalho” ou de “conflito no lar e alegria no trabalho” (quando não são negativos nas duas pontas) chegam aos nossos settings terapêuticos cada vez mais, em crescimento quase exponencial. A pergunta de um bilhão de dólares é: seria possível “virarmos a chavinha”, alcançando a suposta felicidade, ao não levarmos os problemas do serviço para casa ou esquecermos, por exemplo, um problema conjugal temporariamente que nos tira concentração no trabalho? Uma empresa, a Severance (Ruptura na tradução em português), tema central de uma série de ficção científica, traz a utópica solução: um chip que separa e reprime as memórias da vida pessoal e da rotina corporativa. Quando a pessoa passa a porta para dentro do escritório, esquece a vida lá fora, uma amnésia total de família, endereço e passado. Saindo da empresa, retoma a personalidade, lembra quem é no ambiente doméstico, mas não tem ideia do que fez ou faz dentro da empresa. Ótima solução, não? A princípio sim, mas o desenrolar dessa intrigante série vai demonstrar que a tecnologia é, na realidade, um pesadelo para Mark, o protagonista, e também para seus colegas-cobaias.
Colapso psíquico
Muito mais que um libelo anticapitalista, feroz na crítica às grandes corporações totalitárias, “Ruptura” reafirma e vai de encontro a uma certeza psicanalítica – seja ela freudiana ou junguiana: a impossibilidade de reprimir memórias indesejadas de nossa mente consciente sem que afete ou colapse a inevitável compensação psíquica de nossa mente inconsciente. No caso da série, com a ajuda de uma intervenção cirúrgica e tecnológica para comandar a região de memórias do cérebro. Não quer dizer que não seja desejo tanto de analisandos como de psicanalistas extinguir o sofrimento psíquico ao apagar memórias tristes ou traumáticas de nosso passado, mas são elas que formam parte do que somos. E quando perdemos parte de nossa história pessoal, sejam boas e más lembranças, tornamos incompleta nossa personalidade e nosso inconsciente pessoal, sem a possibilidade de aprender e amadurecer com nossas experiências de vida. Uma ideia semelhante é defendida no ótimo filme “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”.
O chip repressor de memórias de “Ruptura” – que atende mais às intenções inescrupulosas da corporação de ter funcionários quase escravizados, focados e alienados da vida externa do que os desejos destes colaboradores de serem felizes sem lembranças que geram sofrimentos (no caso de Mark, por exemplo, do luto não vivido da esposa) – esbarra num simples detalhe: separam-se as memórias da consciência pessoal (do ego, na vida familiar e consequente história individual) das reminiscências da persona (no trabalho, a nossa máscara social, para a coletividade) sem levarem em conta a parte complementar da mente inconsciente – tanto o inconsciente pessoal como o inconsciente coletivo. Ou seja, faltou combinar com a psique de cada um destes funcionários. “Assim como além do indivíduo há uma sociedade, do mesmo modo além da psique pessoal há uma psique coletiva”, escreveu Jung. O resultado? Algumas destas cobaias na empresa começam a “vazar”, de forma psicótica, as memórias reprimidas da vida pessoal por meio de imagens alucinatórias. Na ótica psicanalítica, o que reprimimos internamente, emerge como sintomas no corpo e na mente. É a maneira deformada da compensação psíquica. E ao mostrar a Mark e seus colegas, por imagens simbólicas alucinatórias, pistas para revelar a sua personalidade, o Si Mesmo (conhecido Como o Self da teoria junguiana, a verdadeira essência) de cada um passa a buscar a necessária autorregulação psíquica para evitar uma cisão total do ego e consequente psicose permanente e irreversível.
A lei dos contrários
Como demonstrava Jung em sua obra, ego e persona, o individual e o coletivo, não devem ser separados, mas sim atingir um equilíbrio em nossa realidade interior. O criador da psicologia analítica cita que não devemos esquecer “a mais fantástica de todas as leis da psicologia”, que é a função reguladora dos contrários que habitam a mente (bem e mal, individual e coletivo etc), descoberta pelo filósofo Heráclito e nomeada como enantiodromia (“correr em direção contrária”), advertindo que um dia tudo reverte em seu contrário.
“Tal desprezo pela individualidade significa a asfixia do ser individual, em consequência da qual o elemento de diferenciação é suprimido na comunidade. O elemento de diferenciação é o indivíduo”, escreveu Jung. Compreender a compensação psíquica, por meio da elaboração no setting terapêutico, significa fortalecer a pessoa para enfrentar tanto os sofrimentos mentais no trabalho como em sua vida familiar. Há pessoas com complexo de inferioridade, às vezes humilhadas no ambiente familiar, que compensam esse rebaixamento complexo com inflação psíquica no trabalho, identificando-se fortemente com a projeção de sua persona criada no coletivo do ambiente corporativo, tornando-se às vezes chefes arrogantes e autoritários. Para Jung, se considerarmos o fato de que, como consequência da compensação psíquica, a grande humildade se aproxima demais do orgulho e “o orgulho precede a queda”, descobriremos facilmente, atrás da presunção, certos traços de um temeroso sentimento de inferioridade.
Na obra “Eu e o Inconsciente”, Jung exemplifica sobre as consequências da inflação psíquica no trabalho: “Um exemplo comum é o da identidade destituída de humor, que muitos homens estabelecem com sua ocupação ou seus títulos. O cargo que ocupo representa certamente minha atividade particular; mas é também um fator coletivo, historicamente condicionado pela cooperação de muitos e cuja dignidade depende da aprovação coletiva. Portanto, se me identificar com meu cargo ou título, me comportarei como se fosse o conjunto complexo de fatores sociais que tal cargo representa, ou como se eu não fosse apenas o detentor do cargo, mas também, simultaneamente, a aprovação da sociedade. Dessa forma me expando exageradamente, usurpando qualidades que não são minhas, mas estão fora de mim. ‘L’état, c’est moi’, é o lema de tais pessoas”.
Da mesma forma, funcionários com personas enfraquecidas no trabalho, humilhadas e exploradas, deslocam (na linguagem freudiana) ou compensam psiquicamente (na teoria junguiana) tal frustação na raiva e agressividade em casa contra esposa ou filhos. Ou levam agressividade ou valentia para os sonhos noturnos já que é um processo também do inconsciente que procura compensar os eventos do estado de vigília.
Utopia da felicidade
Por tudo isso, o chip da Ruptura, de pretensa felicidade no lar e no trabalho, é uma ideia impossível mesmo no futuro distante, assim como foi a nefasta lobotomia que chegou a ser uma solução para controlar a agressividade de pacientes insanos. E como também é vendida hoje a ideia de psicofármacos como pílulas da felicidade eternas – e não como sua real função como estabilizadores momentâneos de humor. Em tempos de altos índices de burnout (um nome gourmetizado para a antiga estafa de trabalho), são louváveis as estratégias de líderes conscientes de corporações que, ao invés de estimular a competitividade tóxica entre os funcionários, oferecem apoio nas necessidades sociais da família do colaborador e estimulam também práticas de autoconhecimento, não só a psicoterapia, mas outras vivências integrativas como meditação, yoga, arteterapia, dentre outras. Na realidade, os trabalhadores querem saber quem realmente são, como indivíduos e não personas reféns de uma sombra coletiva que as aliena.
A tão popular “autorrealização” profissional da pirâmide de necessidades de Abraham Maslow, apesar de cultuada durante as primeiras décadas de sua criação, se tornou nociva, ao longo do tempo, aos trabalhadores, por ser utilizada, por muitos anos, como lembrou o analista junguiano Marcos Santis, para a busca do sucesso material a qualquer preço, direcionada para dedicação cega extrema às corporações totalitárias e deixando de lado uma busca mais interior, da individuação (e não individualismo), que é desenvolvimento real da personalidade, de quem realmente somos. Décadas atrás, o mitólogo Joseph Campbell, já questionava esta pirâmide de “sobrevivência, segurança, relacionamentos pessoais, prestígio e autorrealização” por não representarem os valores mais importantes de desenvolvimento interior da pessoa, na jornada mítica de autoconhecimento.
Nos Estados Unidos, a busca incessante pelo “american way of life” só serviu para agravar a saúde mental da população ao longo das décadas. Já a corrente corporativa contrária atual, do bem-estar dos colaboradores, percebeu que, ao promover o amparo na vida pessoal dos trabalhadores e investir no autoconhecimento, do desenvolvimento da personalidade, vem garantindo menos rotatividade no quadro pessoal – e, consequentemente, menos custos em novas formações profissionais. Tais empresários, mais conscientes, contribuem para que seus colaboradores adquiram mais equilíbrio nas ações, mais resiliência nas dificuldades do dia a dia e uma lealdade autêntica à organização. Ações mais eficientes, que buscam o real desenvolvimento tanto pessoal como coletivo. Na direção certa e contrária ao chip de “Ruptura”.
*Fernando Porto Fernandes é psicanalista de abordagem junguiana e escritor. Trabalhou no jornalismo impresso, produzindo textos para jornais e revistas. Atualmente faz atendimento clínico e é autor do livro “Morte, Biografia Não Autorizada”. Contato pelo Instagram @fernandofernandes_psicanalista ou e-mail: portoterapeuta@fernando-porto