O livro “O Anel do Poder”, da junguiana Jean Shinoda Bolen, e a série televisiva “Cursed” constelam com a luta atual contra o domínio patriarcal
“Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro” (Carl G. Jung, em Psicologia do Inconsciente).
Esta tensão dualista entre amor e poder, apontada pelo criador da psicologia analítica foi revelada desde os mitos mais antigos da humanidade. Deuses autoritários, como Zeus, impunham seu poder patriarcal aos filhos e às filhas como forma de controle, deixando sempre o amor em segundo plano. Tais histórias arquetípicas são fortes até hoje, pois são refletidas metaforicamente em nossa psique e nossas relações sociais (família e outros círculos externos).
E assim como a mitologia grega influenciou as teorias de Freud e Jung, as mitologias nórdica e germânica também colocam a mesma dinâmica poderosa-amorosa em suas histórias para serem consteladas em nossos inconscientes pessoais e coletivo. Esta foi a razão que levou Jean Shinoda Bolen, psicanalista junguiana e feminista, a pesquisar profundamente a relação pai-filha entre o deus Odin e a filha guerreira Brunnhilde e criar um livro brilhante, obrigatório para analistas e pacientes.
Sob o título autoexplicativo “O Anel do Poder – A Criança Abandonada, o Pai Autoritário e o Feminino Subjugado” (Editora Cultrix) , a autora traz para o divã o ciclo de óperas “O Anel do Nibelungo” de Richard Wagner, dramas que demonstram os fortes valores patriarcais já oriundos de mitologias de tempos remotos e que refletiam diretamente nas personalidades e nas relações dos povos que cultuavam essas deidades. Ao acompanhar a história, não há como não torcer por um destino melhor para a valquíria Brunnhilde que come o pão que o diabo (ou Odin) amassou, além de abusos de outras sombras masculinas, até sua redenção como heroína do Valhalla (o “olimpo” nórdico).
Além de analisar psicologicamente um drama musical que demonstra o forte controle do patriarcado e que reflete até hoje em nossa vida interior e na sociedade – de mulheres e homens –, o livro de Bolen reconhece méritos a Wagner por sua releitura da mitologia nórdica e germânica – manchado na história pela adoração de Hitler a esta ópera (um dos codinomes do ditador era Lobo, atribuído também a Odin). De certo modo faz sentido a predileção de Hitler pois trata-se de poder abusivo e suas consequências. E nos faz refletir mais coletivamente sobre hoje, tempos também sombrios de novos líderes autoritários. Para a autora, a lição arquetípica dos deuses é de que “ter a posse de alguém ou de algo, obter poder sobre os outros, alcançar a fama agora ou mais tarde ou vingar-se já não são metas capazes de nos mobilizar”. E que só o amor, o ouro da psique, é a verdadeira cura para as feridas de mulheres subjugadas pela sombra patriarcal.
Para Jean Shinoda Bolen, o exemplo da valquíria Brunnhilde demonstra que podemos aprender com a vida. “Quando aprendemos pelo sofrimento, aceitamos a nossa sombra, em vez de projetá-la nos outros; encaramos a verdade com compaixão e temos a coragem de agir com integridade, as defesas e negações vêm abaixo e vemos com clareza, aquilo que realmente importa”, escreve a autora, que é hoje uma importante ativista feminista e também é conhecida por dois best sellers de psicologia arquetípica: “As Deusas e a Mulher” e “Os Deuses e o Homem”.
Outro ponto importante de “O Anel do Poder” é o paralelo dos mitologemas nórdicos-germânicos com os gregos. “O principal deus é Wotan (Odin) e não Zeus, sua esposa é Fricka e não Hera. Brunnhilde, como Atena, é a filha guerreira imortal”. No entanto, Bolen ressalva que há diferenças nas mitologias já que no reino do Poder do Anel há lugar para o amor, a compaixão e a sabedoria. “Trata-se da mitologia da família deficiente em transição, demonstrando que a busca do poder é um substituto do amor”, conclui a psicanalista.
Sonhos amplificados
Jean Shinoda Bolen também conduz o livro como se ela e o leitor estivessem juntos em uma sessão de análise, onde cada história da ópera é elaborada como um sonho e – o que é melhor – com a conhecida amplificação onírica à moda junguiana. Wotan (Odin) é o arquétipo do Pai Autoritário, por exemplo. Valquíria o arquétipo da Filha do Pai, a queridinha, na qual Wotan investe todo seu ideal narcisista e exige obediência cega e nunca ser contrariado. Siegfried encarna a Criança Órfã e, quando adulto, constela o arquétipo do Herói (corajoso, mas fanfarrão). Bem, contar mais desse brilhante livro é promover “spoilers” desnecessários para o leitor.
Dama do Lago empoderada
Ao ler o “Anel do Poder”, é fácil notar, não apenas que as mitologias de povos antigos se repetem arquetipicamente, mas também que as lendas celtas/bretãs, como a dos Cavaleiros da Távola Redonda e Avalon, e outras modernas, como “O Senhor dos Anéis” e “Guerra dos Tronos” bebem da mesma fonte. Destes últimos, não é preciso explicar muito a relação de um “anel do poder”, forjado por anões, com o outro anel perigoso da obra literária de J. R. Tolkien, assim como os fãs de Game of Thrones, vão logo associar o ataque do javali ao rei a uma cena igual do primeiro livro da série de George R. R. Martin, dentre outras “coincidências”.
Na lenda da Távola Redonda, tão retratada em filmes, há a famosa Excalibur que é enterrada na rocha à espera do eleito, o rei Artur – uma grande semelhança à espada poderosa de Wotan na mitologia nórdica, chamada “Notung”, que ele a enterra até o cabo numa árvore para que seu filho eleito a arranque quando houver urgência de batalha. Outra importante semelhança: as ninfas fluviais que protegem o ouro do fundo do Rio Reno, em “O Anel do Poder”, chamadas Donzelas, remetem à Dama do Lago, a que guarda a espada Excalibur sob as águas. E é esta famosa Dama que motivou mais uma história de empoderamento feminino: a série televisiva “Cursed – A Lenda do Lago”.
Esta releitura da lenda do Rei Arthur pode, à primeira vista, lembrar o universo feminino de “As Brumas de Avalon”, a clássica série literária da escritora Marion Zimmer Bradley. Mas não chega a ter a mesma profundidade. Há, claro, a mesma proposta de trazer uma heroína empoderada, que responde com o fio da espada e com a magia aos homens autoritários que cruzam em seu caminho. Mas não deixa de ser interessante imaginar a origem de Nimue, que na mitologia medieval seria a filha de Diana, a deusa dos bosques (como a Ártemis dos gregos), e que tinha a missão de proteger e entregar a espada sagrada Excalibur ao Rei Arthur. Na série, Nimue faz sua Jornada da Heroína até seu encontro com o mago Merlin, que tem uma conexão forte com a espada mágica.
O grande mérito, além da releitura desta importante personagem do mito, é destacar o confronto entre a era matriarcal – da adoração ao poder feminino e das deusas (do povo feérico de fadas, sacerdotisas e magos) – e a era patriarcal, da negação do feminino na divindade, representada aqui por vilões da Igreja (que, por muito tempo, tirou a imagem feminina do sagrado), representada pelos monges Paladinos Vermelhos. É um período de transição, de um mundo interior, de devoção ao amor, para o mundo exterior, das conquistas ambiciosas de poder (novamente, aqui, a dualidade já citada por Jung e pelo livro de Bolen, “O Anel do Poder”).
Na série, Nimue assume, gradualmente, o seu poder de heroína fálica (reconhecida na expansão mágica de Excalibur, quando ela a utiliza contra os malfeitores) e de sacerdotisa escolhida – dois importantes arquétipos que o público feminino irá projetar inevitavelmente ao assistirem cada capítulo. Arthur, seu par romântico, mais coadjuvante como se poderia de fato esperar na série, chega a se fascinar pela espada e a roubá-la de Nimue (clara alusão de um homem tomado pelo complexo de poder e temeroso da força feminina).
No entanto, Arthur logo se redime e direciona amor e dedicação à futura Dama do Lago, principalmente ao entrar no mundo matriarcal dos feéricos, Nemos – um ato simbólico da transformação do lado sombrio do Ânimus (lado masculino da alma de Nimue) para a luz apaziguadora. Morgana, irmã do famoso cavaleiro, não tem na série o grande protagonismo que tinha em “Brumas de Avalon”; ela representa na série uma Ânima (feminino da alma) sem poderes mágicos”.
Em contrapartida, agindo como a Perséfone (na mitologia grega), elemento de ligação do mundo espiritual e material, Morgana é quem ajuda Nimue a seguir em sua missão, conduzindo ela até a poderosa feiticeira Yeva (o arquétipo junguiano da Sacerdotisa ou Velha Sábia, o núcleo mais íntimo da personalidade) que, por sua vez, a ajudará no encontro com o Mago Merlin (outro símbolo arquetípico, o Velho Sábio). Este contato com personagens de sabedoria faz parte do processo de individuação de Nimue.
Alguns mais atentos a dados históricos poderão torcer o nariz por causa dos furos no roteiro e da falta de fidelidade ao mito original. No entanto, o conselho é relaxar e se entreter com a jornada de Nimue e com os dilemas importantes que, assim como o livro “O Anel do Poder”, contribuem para elaborações de aspectos positivos e negativos da psique.
Onde encontrar:
“O Anel do Poder – A Criança Abandonada, o Pai Autoritário e o Feminino Subjugado”: na Livraria do Instituto Humanae, pedidos por e-mail: [email protected]
“Cursed – A Lenda do Lago”: disponível na Netflix
*Fernando Porto Fernandes é psicanalista de abordagem junguiana e escritor. Trabalhou por 30 anos no jornalismo impresso, produzindo textos para jornais e revistas. Atualmente faz atendimento clínico e é autor do livro “Morte, Biografia Não Autorizada”, com o qual faz palestras sobre o tema “Pequenos e Grandes Lutos de Nossa Vida”. Contato pelo e-mail: [email protected]