Psicose contagiosa

Conheça a síndrome “Folie à Deux”, que explica, na literatura psiquiátrica, a relação perturbadora entre os personagens da continuação do filme “Coringa”

Por Fernando Porto Fernandes

É possível “contaminar-se” pela loucura de outra pessoa? É isso que sugere o segundo filme do Coringa, protagonizado novamente pelo premiado ator Joaquim Phoenix e que estreou nos cinemas. Segundo a sinopse do longa, assim como nos quadrinhos clássicos de Batman, Arlequina (interpretada pela cantora Lady Gaga) seria tomada pelo mesmo nível de psicose do Coringa. A diferença é que, enquanto na história original a personagem é uma psicóloga que se apaixona e enlouquece como o famoso vilão, a versão do novo filme já é de uma paciente internada no Asilo Arkham.

“Coringa: Delírio a Dois” tem o título original “Joker: Folie à Deux”. E é nesta expressão que já se incorpora mais da psicopatologia vista no primeiro filme, pois o termo francês “Folie à Deux” se refere, por incrível que pareça, a um transtorno psicótico real que é conhecido como Transtorno Delirante Compartilhado, mas também chamado na literatura acadêmica da psiquiatria como Transtorno Delirante Induzido.
Trata-se de uma síndrome rara, de poucos casos relatados na história médica, caracterizada por transferência de delírios de um sujeito considerado primariamente psicótico para uma ou mais pessoas sem nenhum histórico anterior de tal delírio. Tudo leva a crer que, na história, Arlequina seria tomada pelo mesmo nível de psicose do Coringa.

E novamente vem a pergunta: é possível, então, “contaminar-se” pela loucura de outra pessoa? Na psicologia, os principais teóricos já falaram em contágio social, contágio psíquico e até participation mystique (ou participação mística, em português) que é um conceito criado pelo antropólogo francês Lucien Lévy-Bruhl e que Carl G. Jung adotou para se referir à projeção humana instintiva com as emanações simbólicas da fantasia, na qual as pessoas ficam tomadas por ideais coletivos, como o fanatismo religioso ou político.

No entanto, quando falamos de um contágio de delírios de um indivíduo para outro, como por exemplo, alguém confinado com um paciente grave em um hospital psiquiátrico, é um fenômeno raro, uma síndrome conhecida como Transtorno Psicótico Induzido, caracterizada por transferência de delírios de um sujeito considerado primariamente psicótico para um ou mais sujeitos considerados secundários em relação à origem do delírio. Segundo um estudo do departamento de Neuropsiquiatria, da Universidade Federal de Pernambuco, não se encontram facilmente taxas de prevalência descritas na literatura científica, e até por isso esquecidas nos tratados psiquiátricos atuais, mas uma revisão literária encontrou descrição de 64 casos entre 1993 e 2005.

Os sujeitos, na grande maioria dos casos investigados, estão envolvidos em um contexto de relacionamento próximo e em situações de confinamento. No entanto, a primeira descrição desse tipo de quadro foi escrita por um médico em 1641, mas somente em 1877 o fenômeno foi mais bem detalhado por outros profissionais da saúde.


Mais delírios
A pesquisa da universidade destaca ainda que na literatura científica, pode-se encontrar essa síndrome com várias denominações: como insanidade compartilhada, insanidade contagiosa, loucura infecciosa, psicose de associação e dupla insanidade. Além disso, quando a síndrome é compartilhada por mais de duas pessoas, recebe nomes diferentes: folie à deux (o delírio a dois em francês, como o título do filme), delírio a três, a quatro, em família ou diversos. Grande parte dos sujeitos indutores primários são mulheres e o compartilhamento acontece mais entre parceiros ou entre mães e filhos. Cerca de 60% dos receptores secundários têm apenas o Transtorno Psicótico Induzido como diagnóstico.

Portanto, ao que tudo indica, essa síndrome rara é o mote do início de enlace romântico do Coringa com a Arlequina neste segundo filme. Vale lembrar o meu artigo sobre o primeiro filme, no qual faço análise da hipótese diagnóstica de Arthur Fleck, antes de se tornar famosa figura criminosa. Confira no link:
https://omeurefugio.com.br/2019/10/16/coringa-o-filme/

Fernando Porto Fernandes é psicólogo e escritor. Trabalhou no jornalismo impresso, produzindo textos para jornais e revistas. Atualmente faz palestras, atendimento clínico e é autor do livro “Morte, Biografia Não Autorizada”. Contato pelo Instagram @fernandofernandes_psicanalista ou e-mail: [email protected]