Ao abordar a hipnose ericksoniana, a Rede Globo poderia esclarecer sobre uma técnica eficaz para traumas, mas lamentavelmente banalizou um tratamento sério
Nunca fui fã de novelas, mas quando soube que “O Outro Lado do Paraíso” (Globo) abordaria o uso da hipnose ericksoniana – a terapia na qual me formei – para tratamento da personagem Laura, com trauma por causa de abusos sofridos no passado, preparei-me para assistir a tais capítulos. Após assisti-los, minha empolgação se transformou em frustração e preocupação. O modo como foi tratada a hipnose foi de imensa irresponsabilidade.
Em um dos capítulos, fiquei pasmo ao ver que a advogada Adriana (advogada!) dizia conhecer algumas técnicas de coaching e hipnose eriksoniana e que, a pedido da heroína da novela, Clara Pereira, usaria, com sua “vasta” experiência nestas técnicas, a hipnose para resgatar as memórias de Laura e descobrir quem foi o grande abusador de sua infância. Ou seja, além de citar inadequadamente o coaching como ferramenta psicoterápica para um trauma sério (a própria associação nacional destes profissionais protestou contra esta fala), a advogada tratou a hipnose como algo que não necessite de estudo, preparo e experiência de campo antes de ser aplicada em casos críticos, como o de vítimas de abuso sexual. Ou seja, tratou igual a aquela simpatia ou aquele remedinho que você aprendeu com sua avó em caso de dor de barriga.
É comprovada cientificamente a eficácia da hipnose eriksoniana para tratar traumas, fobias, crises de alta ansiedade, depressão, alívio de dores e controles de vícios. Além de seu uso por psicólogos, psicanalistas, médicos, dentistas, a hipnoterapia é usada por outros profissionais que não possuem formação na área de saúde, mas, vale frisar bem, que tenham capacitação em hipnose clínica e que sejam treinados de forma adequada por instituições habilitadas para essa formação.
No caso da advogada da novela, vê-se claramente que não era uma hipnoterapeuta profissional, mas sim alguém que não exerce uma profissão na área terapêutica e da saúde e que simplesmente aprendeu uma técnica em um curso de coaching – que cuida exclusivamente do desenvolvimento profissional ou pessoal e não de tratamento psicoterápico. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) também se pronunciou, acertadamente, em nota oficial, contra o modo simplista que a novela tratou o trauma emocional e criticou o uso da técnica por um profissional não habilitado.
Não bastasse a banalização de um tratamento sério, o capítulo seguinte da novela agravou a distorção da hipnoterapia com outros absurdos. Em primeiro lugar, a falta de tempo necessário para uma anamnese adequada da paciente – um histórico fundamental, de conhecimento do passado da pessoa (doenças anteriores, remédios que ingere diariamente, fobias etc) antes de colocar a pessoa no transe propriamente dito. Alguém pode até argumentar que novela não pode perder tempo nestes detalhes, é ficção, mas poderia perfeitamente dar a entender que outras entrevistas já teriam sido realizadas com o paciente – e isso não fica claro em nenhum momento. Na primeira sessão, ela usa uma técnica de perguntar a Laura três lembranças boas e três lembranças ruins. A menina mostra bloqueios nas lembranças ruins e pede para encerrar a sessão.
Outra regra na terapia eriksoniana: conduza a pessoa no transe de forma muito segura (o processo conhecido como pacing-leading), de confiança mútua e, principalmente, com o paciente consciente! Ao contrário do que algumas pessoas imaginam (desculpem me por decepcionar alguns), não há inconsciência da pessoa em transe, mas sim estados alterados de consciência. O genial Milton Erikson diferenciava sua técnica principalmente por este autodomínio do paciente durante a sessão, sem o caráter autoritário da hipnose clássica. Sim, porque estamos falando de acessar conteúdos do Inconsciente para levá-los – com segurança, vale frisar novamente – à mente consciente. Freud comparava esta interação entre o ego e nossa parte inconsciente com a de um cavaleiro que monta um cavalo poderoso, na qual o animal é a força motriz que leva o homem pelo caminho, porém tal força deve ser controlada com as rédeas para não dominar o cavaleiro e até derrubá-lo.
E, então, o que vemos na novela, na segunda e derradeira sessão, é a advogada colocando Laura diretamente em transe, em contato com o seu abusador, num lugar sombrio, próprio de um pesadelo, sem ao menos criar antes o chamado “ambiente seguro”, onde ela poderia visualizar e relembrar, gradativamente e em segurança, como uma observadora afastada da cena.
Não satisfeita em jogar a menina na “fogueira” do seu trauma, a pseudo-terapeuta não faz o chamado “holding”, de apoio terapêutico, quando a menina começa a gritar e se desesperar no transe e – pasmem – larga a cliente e sai correndo escada abaixo para pedir ajuda à protagonista da novela, que sobe em seu socorro. A heroína Clara sobe, dá o apoio que a advogada não deu, mas, ao invés, de ajudá-la a sair do lugar crítico do transe, evitando riscos e piora do trauma, aproveita para interrogar a menina e pergunta se ela está vendo quem é o abusador (claro, a audiência da novela tem pressa para resolver). Pronto, a menina lembra do padastro. Simples assim.
Enfim, apesar da positiva campanha de alerta e prevenção contra o abuso sexual, é uma pena que uma novela com enorme audiência não cumpra também a missão de esclarecer o importante papel da hipnose ericksoniana. Ao contrário: contribuiu ainda mais para mistificar a técnica e incentivar o uso sem preparo e responsabilidade profissional. É uma terapia da qual tenho comprovado sua eficácia em diferentes casos que recebo no meu espaço terapêutico.
E caso eu tivesse alguma amiga, sofrendo de um caso semelhante à Laura da novela, e ela insistisse em se tratar com uma aventureira do mesmo naipe da advogada Adriana, daria aquele mesmo conselho do personagem do filme “Get Out!”, o empregado-escravo da mansão, ao protagonista desavisado (um longa que brinca também com a hipnose): “Corra!”
Fernando Porto Fernandes é psicanalista da linha junguiana e especializado em Hipnose Ericksoniana. Contato pelos e-mails: [email protected] e [email protected]