Ele sabia da futilidade do conteúdo de seu smartphone, mas precisava de uma palavra ou um símbolo milagroso para fechar o buraco que sentia na alma.
Citacões no Twitter, fotos de pôr-do-sol no Instagram, vídeos motivadores, histórias edificantes no Facebook – nada, nada mesmo parecia iludir sua dor interna. Arriscou até o noticiário de seu clube de futebol e nem a vitória magra de 1 a 0 sobre o rival serviu para um esboço de sorriso.
Já tinha olhado o streaming de filmes e a TV a cabo em busca de uma imagem ou histórias que diminuíssem a ansiedade de sua dor. Revirou dramas, romances, comédias da programação e e o vazio permanecia. Drogas, remédios psiquiátricos e bebidas habituais apenas entorpeciam os pensamentos ruins, que ressurgiam a cada manhã.
Um buraco na alma que não cicatrizava nos últimos três anos desde que a mulher o deixara, levando seus dois filhos pequenos para ir morar com um industrial abastado – uma das consequências de seu longo período de desemprego, quando a multinacional de publicidade, na qual trabalhara por 15 anos como diretor de arte, fechou as portas. O falecimento da mãe no ano anterior e uma eterna UTI do pai para aplacar um câncer contribuíram para enfraquecer ainda mais suas defesas anímicas.
A depressão foi se aprofundando e o abandono das sessões de psicanálise agravou seu estado de espírito, mantendo-o enclausurado no quarto escuro, com uma TV ligada interminavelmente por vários dias sem que nada o tirasse do tédio.
Naquele fim de tarde, estava surpreendentemente sóbrio, apenas com uma dor de cabeça latejante. Continuava, no escuro do quarto, buscando inutilmente a salvação na telinha do smart. Sabia o quanto estúpida era aquela missão. O vazio dentro do vazio começou a transformar a tristeza profunda em raiva. A explosão chegou então de súbito. Uma fúria que o tomou a ponto de lançar com força o smartphone contra o espelho grande da parede. E algo assustador aconteceu.
Não houve barulho de vidro quebrando e nem estilhaços no ar. O aparelho foi engolido por um reflexo aquoso do espelho, como se fosse um lago vertical. E caiu lentamente no chão do outro lado do espelho. Já tinha tido surtos, mas sempre pelos abusos das drogas. Aquele delírio sóbrio o deixou apavorado, tremendo. Seu reflexo no espelho estava na penumbra, fitando-o parado, braços baixos, não seguindo seus movimentos reais de mãos no rosto e nem do corpo tremendo de espanto.
Criou coragem e avançou vagarosamente até o espelho. Seu reflexo era do mesmo homem de 51 anos, mas parecia ter uma aparência mais vigorosa, com um pequeno sorriso de canto de boca enquanto o encarava. O homem do “lado real” arriscou então esticar os dois braços para dentro do espelho. O vidro novamente se distorceu como um líquido e suas mãos ficaram sobre as palmas das mãos do “eu reflexo” que já havia erguido os braços para acolher amigavelmente o gesto. Sentia as mãos quentes de uma pessoa que estava bem longe de ser uma ilusão.
“Estou morrendo ou já morri?”, perguntou ao seu reflexo, em tom baixo, e seus olhos logo se encheram de lágrimas. Ficou ali esperando uma resposta por alguns segundos, que pareciam horas, no espaço limítrofe daquela espécie de porta dimensional aquosa. Gentilmente, seu reflexo o puxou para seu lado dimensional do espelho e tudo parecia igual – cores e cheiros.
“Você está morrendo agora, mas não como imagina que seja”, respondeu o reflexo com a voz idêntica. “Mas tenha certeza que vai continuar sua vida lá fora. Há muito o que fazer ainda”. No mesmo momento, o homem do mundo físico soltou das mãos do reflexo e caiu de joelhos em prantos. “Está tudo difícil, mas vai passar logo. É o curso natural do rio”, prosseguiu o reflexo na mesma voz calma e serena.
Ainda de joelhos, chorando de olhos fechados, o homem foi surpreendido por uma voz de criança que dizia: “Vai passar logo, seu bobo. Levanta!”. Arregalou os olhos à frente: seu sósia adulto tinha sumido e uma criança, com trajes escolares sujos de barro, tomou seu lugar, soltando uma gargalhada marota. Pensou inicialmente que era seu filho, mas logo percebeu que era diferente, semelhante a uma das fotos antigas que tinha em um baú. O menino se aproximou e ele o abraçou afetuosamente, sentindo um forte cheiro de doce do uniforme de escola.
Ficou abraçado à criança, que o apertava forte, e seu choro passou a ser de alegria a cada gargalhada infantil. A sensação boa de minutos foi substituída por entorpecimento do corpo até cair em desmaio, soltando vagarosamente o menino.
Acordou no chão, encostado no “lado real” do espelho, de volta a seu quarto frio e escuro. Seu reflexo era apenas aquele rotineiro, sem a vida própria e independente da sua experiência anterior. Levantou-se e encostou a testa no vidro do espelho e, desta vez, não atravessou a imagem aquosa. Mas não sentia mais o buraco na alma. Desencostou a testa, e repetiu para seu reflexo: “Eu sei, vai passar logo. Eu sobrevivi”. No reflexo, nada de anormal, apenas sua repetição simultânea dos movimentos.
Virou as costas e achou que a experiência enigmática (ou surto) tinha passado, mas, antes de caminhar para a porta, ouviu uma voz rouca proferindo: “Sim, sobreviveu”. Virou assustado e viu a penumbra de um velho de barba branca, bem vestido com uma roupa social de festa. Tinha seu próprio rosto, com muitas rugas. “Já passou. Continue a viagem!”, prosseguiu o velho, abrindo um largo sorriso e dando um leve aceno de adeus com a mão direita. Sumiu em seguida, sendo substituído pelo reflexo normal. “Obrigado e adeus!”, respondeu o homem. Abriu a porta, assobiando como em um dia normal, sem se importar em raciocinar sobre realidade e ilusão – ou razão e loucura. Começou a caminhar, sorrindo, com o sol forte iluminando sua face. E com a certeza de que tudo seria diferente daquele dia em diante.
*Fernando Porto Fernandes é psicanalista de abordagem junguiana e escritor. Trabalhou por 30 anos no jornalismo impresso, produzindo textos para jornais e revistas. É autor do livro “Morte, Biografia Não Autorizada” e faz palestras sobre o tema “Pequenos e Grandes Lutos de Nossa Vida”. Contato pelos e-mails: [email protected] ou [email protected]