O dragão em nosso inconsciente

Por que essa impressionante figura arquetípica fascina a humanidade há milênios? A explicação na psicologia e na mitologia é de que essa fera representa a sombra interna de cada um, que precisa ser enfrentada e assimilada no nosso processo de evolução interior.

Por Fernando Porto Fernandes

A rainha e seu dragão em House of the Dragon (Créditos: Reprodução HBO Max)

O que faz a série “House of the Dragon” – ou “A Casa do Dragão” – ser um dos maiores sucessos de audiência mundial, ao final de sua segunda temporada? Poderíamos deduzir que são as intrigas familiares na nobreza, em sua constante luta pelo poder? De certa forma, Sim. Mas os grandes protagonistas da série são os incríveis e temíveis dragões que surgem como grandes aliados de reis e rainhas nos campos de batalha.

Nós, espectadores, projetamos um fascínio por essa fascinante figura arquetípica, que existe nas mais diferentes culturas e no inconsciente coletivo desde os tempos mais remotos, não só nas lendas arturianas da Idade Média, como também nas mitologias orientais. Enfrentar e dominar o dragão tem um aspecto psicólogo profundo em nosso inconsciente. O interessante da série da HBO Max é que o dragão não é enfrentado simplesmente para matá-lo, mas sim para domá-lo e montá-lo como um cavalo gigante alado, e usá-lo contra os inimigos.

Para o psicólogo Joseph Henderson, parceiro de Carl G. Jung no livro “O Homem e Seus Símbolos”, a mito entre o herói e o dragão mostra simbolicamente a luta e triunfo do nosso ego sobre as tendências regressivas do inconsciente. Segundo ele, para a maioria das pessoas, o lado sombrio ou negativo da personalidade permanece inconsciente. Trata-se do conceito de sombra de Jung, projetada pela mente consciente do indivíduo, e que contém os aspectos ocultos, reprimidos e negativos de sua personalidade.

Mas essa sombra, pondera Henderson, não é apenas o simples inverso do ego consciente, já que o ego possui também comportamentos desfavoráveis destrutivos. E a sombra, por sua vez, possui ainda boas qualidades, como instintos normais e impulsos criadores. Na verdade, o ego e a sombra, apesar de separados, são tão ligados um ao outro quanto sentimento e pensamento. O ego, porém, entra em conflito com a sombra, naquilo que o Jung chama de a “Batalha pela Libertação”.

Subjugando e assimilando a sombra
O herói do mito, então, precisa se convencer de que a sombra interior existe e que poderá retirar sua força deste seu poder destrutivo interno, se quiser estar suficientemente preparado para vencer o dragão. Ou seja, para que o ego triunfe, precisa antes subjugar e assimilar a sombra, simbolizada pelo dragão. Henderson também cita que essa luta para dominar o dragão se trata do ego infantil ou adolescente libertando-se da opressão das ambições paternas e encontrando a sua própria individualidade.

O psicólogo escreve que, como parte dessa ascensão em direção à consciência, a batalha entre o herói e o dragão pode se repetir várias vezes, a fim de liberar a energia necessária para uma imensidão de tarefas humanas que pode formar do caos um esquema cultural. E quando esse processo obtém êxito, vemos a imagem total do herói emergindo com uma espécie de força do ego que já não necessita mais vencer monstros e gigantes. Atingiu um ponto em que essas forças profundas podem ser personalizadas. Toma uma forma menos ameaçadora.

Na mitologia grega, Perseu não só teve de cortar a repulsiva cabeça da Medusa para se libertar do domínio matriarcal, mas também precisou vencer o dragão que guardava Andrômeda, simbolizando essa luta do jovem imaturo para se libertar, no inconsciente, do domínio da mãe, que o mantém infantilizado na vida. É o que também mostra na mitologia grega, a jornada do herói Teseu, ao derrotar o Minotauro no labirinto, com a ajuda da princesa Ariadne – uma analogia da libertação da Ânima (o feminino da alma) dos aspectos devoradores da imagem materna. Para a psicologia junguiana, somente quando alcança essa libertação da fixação materna é que um homem se torna realmente capaz de se relacionar bem com uma mulher.

Expansão da consciência
Na luta travada pelo homem primitivo para alcançar a consciência, esse conflito entre a sombra e o ego se exprime pela disputa entre o herói e os poderes cósmicos do mal, personificados por dragões e outros monstros. No decorrer do desenvolvimento da consciência individual, segundo Henderson, a figura do herói é um meio simbólico pelo qual o ego emergente vence a inércia do inconsciente, liberando o homem amadurecido do desejo regressivo de uma volta ao estado da bem-aventurança da infância em um mundo dominado por sua mãe.

Mas há outros mitos em que o herói cede ao monstro. Exemplo típico é a história bíblica de Jonas e a baleia, na qual o monstro marinho engole o herói e o transporta durante uma noite inteira, numa viagem do oeste para o leste simbolizando o suposto trajeto feito pelo sol do crepúsculo à aurora. O herói fica mergulhado em trevas que representa uma espécie de morte.

A visão psicanalítica
Do ponto de vista da psicanálise freudiana, o psicólogo Bruno Bettelheim, em sua obra sobre os contos de fadas, coloca o cavaleiro contra o dragão nos como o simbolismo de amadurecimento de um menino, a partir de um conflito edipiano. Ou seja, o famoso complexo de Édipo, de disputa do filho com o pai pelo amor da mãe. Isso, claro, não de forma literal, mas no simbolismo psicanalítico do inconsciente.

Os detalhes dos contos de fadas podem diferir, mas, segundo Bettelheim, a trama básica é sempre a mesma: o herói improvável que se põe à prova matando dragões, resolvendo charadas e até que finalmente liberta a bela princesa, casa-se com ela e vive feliz para sempre. A história sugere que não é o ciúme do pai que o impede de ter a mãe exclusivamente para si, mas sim, um dragão perverso. Mais ainda, aponta o psicólogo, a história dá veracidade ao sentimento do menino de que a mais desejável das mulheres é mantida em cativeiro por uma personagem má. Enquanto sugere que não é a mãe que a criança deseja para si, mas uma mulher maravilhosa e magnífica que ainda não encontrou, mas que certamente encontrará.

A história conta mais a respeito, acrescenta Bettelheim, daquilo que o menino deseja ouvir, acreditar, que não é por sua livre e espontânea vontade que essa mulher maravilhosa (sua mãe) mora com essa personagem masculina má. Ao contrário, se ela pudesse, preferiria muito mais estar com um jovem herói (como a criança).

O matador de dragões, ainda na visão freudiana, tem sempre que ser jovem como uma criança inocente e essa inocência do herói, com que a criança se identifica, prova por procuração a sua inocência de modo que longe de ter que se sentir culpada por suas por suas fantasias, ela pode sentir como se fosse o herói, o orgulhoso. O menino edipiano, que se sente ameaçado por seu pai devido ao seu desejo de substituí-lo nas atenções da mãe, projetam este pai no papel do dragão, o monstro ameaçador. Bettelheim cita que as histórias de fadas que ajudam a menina edipiana a entender seus sentimentos e encontrar uma satisfação substituta, não são de enfrentamento a um dragão, mas são os ciúmes intensos da mãe (geralmente, a madrasta) ou da feiticeira que impede um amante de encontrar a princesa.

O guardião do limiar
Para o grande mitólogo Joseph Campbell, o dragão, na jornada do herói, é o guardião do limiar, um teste crucial que o herói deve superar para alcançar a transformação e a maturidade, simbolizando também a jornada interna de enfrentamento de transcendência de nossos limites e medos. Então, ocorre mais uma vez o cruzamento da linha divisória, que ele chamava de retorno através do limiar. A linha que se cruza ao entrar no abismo é a que se tem de atravessar quando deixa os poderes para trás.

Mas será que o herói consegue voltar ao mundo da luz ou continuará sendo presa dos poderes subterrâneos? Campbell explica que a crise da descida é a mesma do retorno. Se ele desceu ao ser engolido por uma baleia, por exemplo – como Jonas foi engolido pelo abismo, citado no início – no fim, será lançado de volta de dentro da baleia. A ideia é que é preciso demonstrar aquilo que ele foi recuperar, o potencial não utilizado do indivíduo, e o sentido da jornada é a reintrodução desse seu potencial no mundo.

Campbell toma como exemplo uma oposição entre o cavaleiro lendário Siegfried e Fafner, o dragão que ele mata, que é proeza típica do herói: cruzar o limiar e matar a fera. Siegfried e Fafner são opostos, mas só depois de o primeiro ter sentido o gosto do sangue do dragão e integrado em si mesmo o caráter deste é que ele ouve os pássaros cantando e entende o que eles querem dizer. Não se pode entrar em contato com a força da natureza, que inclui tanto você quanto o outro enquanto não se aceitar, como parte e parcela sua, a parte antes excluída, aquela tida como outro.

É por causa das contingências da sua vida – sua família, sociedade, as dores de cabeça, os milhares de choques naturais que a carne humana herda – que o ser humano veio a ser como é e não de outra forma. Mas você tem esse mesmo potencial dentro de si. E citando a psicologia de Jung, Campbell salienta que não é preciso se identificar com o outro para assimilá-lo e reconhecer que ele representa um aspecto diferente daquilo que você é.

Por tudo isso, é que histórias como as de “House of The Dragon”, nos trazem tantas projeções arquetípicas com essa fascinante figura lendária.
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Fernando Porto Fernandes é psicólogo e escritor. Trabalhou no jornalismo impresso, produzindo textos para jornais e revistas. Atualmente faz palestras, atendimento clínico e é autor do livro “Morte, Biografia Não Autorizada”. Contato pelo Instagram @fernandofernandes_psicanalista ou e-mail: [email protected]