Na prática da centenária arte marcial dos samurais, esse poderoso arquétipo do herói nos convida a rituais de coragem contra as adversidades da vida
“O guerreiro que existe dentro de cada um de nós pede que tenhamos coragem, força e integridade; que possamos estabelecer metas e perseverar no esforço de atingi-las; e que sejamos capazes de lutar, quando necessário, por nós mesmos e pelos outros. O guerreiro exige um elevado nível de compromisso com a sua própria integridade”, definiu a psicóloga Carol S. Pearson, autora de “O Despertar do Herói Interior”, que reforça a importância deste arquétipo em nossa jornada de individuação. “O arquétipo do Guerreiro diz respeito à afirmação do nosso poder no mundo, ao estabelecimento do nosso lugar no mundo e à transformação do mundo num lugar melhor”, acrescentou.
Para quem não tem conhecimento do termo – e nem sempre é fácil definir um conceito tão amplo –, os arquétipos surgiram na concepção platônica como ideias ou modelos originários de todas as coisas existentes. Muitos séculos depois, Carl G. Jung fixou sua concepção na sua psicologia analítica de que tais ideias primordiais (mãe, pai, guerreiro, sábio, rei, são alguns exemplos), assim como temas arquetípicos que se repetem mesmo em civilizações distantes pelo tempo e pelo espaço (guerra, iniciação, paz, religião …), fazem parte do inconsciente coletivo da humanidade. Tom Cheetham, autor de livros sobre aspectos psicológicos da imaginação, tem uma interessante definição de arquétipos como “estruturas transculturais da psique humana”.
Além do guerreiro, o estudo de Pearson elencou outras 11 figuras arquetípicas (o inocente, o caridoso, o sábio, entre as principais) associadas aos três estágios do monomito Jornada do Herói (Preparação, Jornada e o Retorno) – tão propagado pelo mitólogo Joseph Campbell e baseado principalmente nas mitologias de Grécia e Roma antigas, além de se repetir em outras culturas milenares do Oriente e de povos indígenas. É fato que a jornada heroica do arquétipo do guerreiro está mais próximo ao perfil das histórias dos heróis das nações, nas quais se misturam muitas vezes lendas e fatos históricos embasados – como El Cid na Espanha, Joana D’Arc na França, e no caso do Japão, o samurai Miyamoto Musashi. O arquétipo heroico dos contos de fadas estaria mais próximo às figuras do inocente ou do louco do estudo Pearson, um herói improvável como um camponês frágil ou o filho mais novo de um rei, como observado nas obras da analista Marie-Louise von Franz, uma das principais continuadoras da obra de Jung.
Uma das maneiras de praticarmos os princípios de integridade do arquétipo do Guerreiro, para uma possível constelação interna, não é por meio de questionáveis “ativações” místicas que se espalham pela internet e, muito menos, literalmente, numa indesejada guerra sangrenta. Neste ponto, é importante lembrar os avisos de advertência de Carl G. Jung, criador da psicologia analítica, de não cairmos na armadilha da presunção de “ser” ou encarnar um arquétipo poderoso, que é diferente do atributo mítico (e não místico) a qual a escritora se refere. Temos que integrar o espírito de guerreiro em nossa própria história de vida e não viver no delírio de um personagem, como o fez Dom Quixote, o icônico cavaleiro de Cervantes. Do contrário, corremos o risco de sucumbir à possessão arquetípica e até a delírios coletivos que, infelizmente, costumam ocorrer na política de vários países – casos de contágio psíquico na suposta encarnação de guerreiros salvadores da pátria.
Batalha interna contra o cavaleiro da sombra
Além de sermos íntegros em nosso dia-a-dia, podemos interiorizar os atos simbólicos do mito do guerreiro na prática das artes marciais do Oriente, principalmente na arte da espada dos samurais que nos ensina o kendo, também conhecido como kenjutsu. Não se deve esquecer de que, além das práticas no mundo externo, temos nossa dualidade bem/mal a ser elaborada em nossa psique; ou seja precisamos vencer e integrar o “cavaleiro inimigo”, que se apresenta na sombra em nosso inconsciente, como apontei recentemente em outro artigo sobre o filme Green Knight (https://omeurefugio.com.br/2022/02/14/green-knight-a-individuacao-de-gawain/). O analista Robert A. Johnson, autor de “He”, escreveu que, visto pelo ângulo do descontrole da agressividade, o cavaleiro sombrio é o lado potencialmente destrutivo, a personalidade-sombra que precisa ser trabalhada, e não reprimida, para ampliação da consciência. No entanto, há o desafio de o ego não ser vencido pela ira.
Tive uma forte identificação com essa prática centenária do kendo, muito mais do que em escolas e dojos que conheci desde a adolescência – kung fu, judô, karatê e ninjutsu. Tão divulgado nos filmes de Akira Kurosawa e nos mangás (histórias em quadrinhos japonesas), o treinamento dos antigos samurais oferece ritos simbólicos que nos preparam para forjar o guerreiro (ou guerreira, no caso da mulher) em nossa alma, assim como, arquetipicamente, eram os ritos e provas de coragem dos povos indígenas. Em relação aos nativos americanos, vale citar um relato de Joseph Campbell, em seu livro “Mito e Transformação”, ao contar o fato verídico, durante a Segunda Guerra Mundial, de um curandeiro – Jeff King – que preparava os jovens navajos convocados (um plano militar para usar a língua indígena nas comunicações no front, indecifrável para os alemães), em ritos de três dias e três noites, para a sua transformação em guerreiros, por meio de encenação da história navajo com canções e pinturas.
A prática arquetípica
Voltando ao mito do guerreiro samurai, presente no kendo, foi em um dojo, localizado no coração do bairro da Liberdade, em São Paulo, que tive o privilégio de treinar com o sensei Yoshiaki Kishikawa, membro honorífico do Hagakure (Centro de Estudos Samurai e Bushido do Japão), assim como com sua esposa, Michiko Kishikawa, outra exímia mestra de kendo. “Tadashii Kokoro, Tsuyoi Kokoro o Tsukurimassu!” – era um dos vários princípios filosóficos de seu dojo, a Saga, que repetíamos em voz alta no início do treino e que significa, na tradução do japonês: “Desenvolvemos um espírito (coração) correto e forte”. Era impossível para mim não sentir uma “vibração na alma” a esses atos míticos de devoção, disciplina e coragem, assim como durante os gritos a pleno pulmão que os alunos – homens e mulheres, adultos e crianças – faziam a cada corrida com suas “shinais” (espadas de bambus) em punho, todos equipados com os pesados bogus (armaduras protetoras).
Antes de treinar no dojo da Saga, fui iniciado nessa arte marcial no Instituto Niten, do sensei Jorge Kishikawa, um dos filhos de Yoshiaki, que busca o resgate das técnicas de Miyamoto Musashi (1584-1645), conhecido como o mais famoso samurai de todos os tempos, com seu próprio estilo, o Niten Ichi Ryu. O site oficial, de Jorge (niten.org.br), explica que samurai (kanji, em japonês) significa literalmente “aquele que serve”, herança de quando esses combatentes eram subordinados diretamente ao imperador. Outro termo muito usado para se referir aos samurais é bushi, que representa literalmente “guerreiro”. É a raiz da palavra Bushido ou “Caminho do Guerreiro”. Enquanto eu aprendia os katas (movimentos de combate) do kenjutsu no instituto, era motivado sempre a persistir na vida nas principais virtudes: justiça (gi), coragem (yuu), benevolência (jin), educação (rei), sinceridade (makoto), honra (meiyo) e lealdade (chuugi).
Sempre achei interessante ser uma arte marcial com apenas katas de ataque e quase nenhum de defesa, pois, é fato que, assim que se entra no combate, não há recuo; ganha aquele que for mais rápido com a shinai para atingir os pontos permitidos na proteção do bogu. Após passar a primeira graduação de kenjutsu, um episódio de sincronicidade pura me levou, ao passear um dia pelo bairro oriental da Liberdade, em São Paulo, a deparar-me com a entrada do dojo da Saga Kendo (www.sagakendo.com), liderado pelo pai de sensei Jorge: o mestre Yoshiaki Kishikawa.
Além do kendo, apaixonei-me ali pela prática do iaido, de movimentos suaves e meditativos com a katana (a famosa espada de metal dos filmes) em combates imaginários. Curiosamente, o senso comum desconhece que a shinai (espada de bambu) dos treinos de kendo não representa a katana mas, na realidade, a tsuguri – uma espada de aço de dois gumes usado na guerra. “Um gume para cortar o inimigo e outro para si mesmo, o eu interior”, explicou o professor Kazuma Koji, diretor da Academia Japonesa de Artes Marciais do Japão, durante uma palestra que tive a honra de assistir com os senseis Yoshiaki e Michico, em 2009.
Na era dos samurais
Segundo Koji, a origem do kendo ocorreu entre os séculos 14 e 16, quando se desenvolveu sua forma original, mais antiga, o kenjutsu. O “novo” começou a ser praticado 400 anos atrás, quando foram produzidos os primeiros bogus feitos de bambus. Foram durante as batalhas do período que se desenvolveram as artes marciais, o Budo, durante as quais os guerreiros utilizavam o kyudo (arco e flecha), o jukendo (baioneta), o jodo (cajado), dentre outras armas. A espada era a arma mais eficiente principalmente como complemento às armas de fogo. A katana era chamada, na época, setsuninto, “a espada que mata”. A partir do desenvolvimento do koryu como filosofia, passou a ser chamada “espada da vida”.
Outra curiosidade sobre a palavra kendo é que tem origem no taoísmo de Lao Tsé e representa a “busca infinita da perfeição”. No kendo, lembrou o professor, o bom praticante se distingue por sua dedicação ao keiko (prática diária) e ao shiai (garra e desempenho nas lutas). Uma vitória depende de vários fatores como a postura, os olhos na luta e principalmente o conhecimento da respiração do oponente, mesmo à distância; assim será possível acertá-lo no momento certo. Por essa razão, o grande desafio do praticante é ter uma respiração inabalável o tempo todo. Se o lutador não mostrar a si mesmo, o oponente irá se revelar.
Ritual e poder
Joseph Campbell, ainda no livro citado anteriormente, fez uma analogia entre os samurais e os povos caçadores do Congo para enfatizar que ambos executavam em suas vidas atos mitológicos. Não eram simples atos individuais, mas de um “poder cósmico” que atuava através de cada um. “A questão é estar equilibrado com isso e ao mesmo ter uma personalidade”, advertiu Campbell. Ele cita a história de um samurai que desistiu de matar o assassino de seu chefe supremo porque, ao se irritar com o algoz de seu mestre – que, acuado, cuspiu em seu rosto – entendeu que o uso de sua katana deixaria de ser um ato de honra para se tornar um ato pessoal de vingança, o que acabaria com todo o ritual simbólico que jurava defender.
Viver o mito do guerreiro, seja no kendo ou em outra arte marcial, é ritualizar, em cada movimento, o combate às adversidades da vida com coragem, além de contrapor os íntegros princípios filosóficos a cada ato egoísta, quando deixamos de ajudar e amar ao próximo, seja familiar, amigo ou paciente. Nunca fui um exímio praticante e muito longe de ser vencedor de torneios, mas abracei sempre a dádiva que a arte marcial me trouxe, dos ensinamentos desse poderoso arquétipo do guerreiro.
A vida atribulada fez, infelizmente, com que eu abandonasse as práticas de kendo e iaido e perdesse o contato com a Saga Kendo. Durante a pandemia, tentei sem sucesso, por telefone e e-mail, o contato com os senseis para doar meu bogu e minha katana a um praticante que não tivesse condições financeiras para adquiri-los, mas não obtive nenhuma resposta.
E foi no Instagram oficial do dojo, pouco atualizado, que tive a triste notícia do falecimento de sensei Yoshiaki Kishikawa em 2019, aos 84 anos. No entanto, permanece em minha alma os ensinamentos do “velho sábio” e da “velha sábia”, o casal que me ensinou a vivenciar o mito do guerreiro samurai não apenas com a repetição dos katas, mas também com os atos mais simples e nobres da vida, por meio do “Reigi” (em japonês: “Disciplina, Respeito e Correta Conduta” para as mais diversas situações, pessoas e ambiente).
“Kookenchiai!” (“Conhecer o amor através da interação das espadas!”), ecoa a voz de sensei Yoshiaki no eterno inconsciente.
Fernando Porto Fernandes é psicanalista de abordagem junguiana e escritor. Trabalhou no jornalismo impresso, produzindo textos para jornais e revistas. Atualmente faz atendimento clínico e é autor do livro “Morte, Biografia Não Autorizada”. Contato pelo Instagram @fernandofernandes_psicanalista ou e-mail: [email protected]