Baseado em conto arturiano, filme “A Lenda do Cavaleiro Verde” mostra a jornada do herói Gawain e sua busca para a ampliação da consciência
Por Fernando Porto Fernandes*
Até que ponto chegamos ao sacrifício em nossa jornada heroica de individuação? O enigma da entrega à morte, a ser decifrado e superado, seria a prova final desse monomito tão propagado por Joseph Campbell e Carl G. Jung? É evidente que a resposta é afirmativa para esta pergunta quando estudamos as histórias arquetípicas dos heróis de diferentes mitologias e religiões da humanidade por meio dos escritos destes dois gênios da análise psicológica. Mais evidente fica a resposta quando mergulhamos na leitura dos contos arturianos da Idade Média.
E é em um destes poemas épicos da lenda da Távola Redonda, do século 14, que o dilema mortal do sacrifício conduz a jornada do herói – ou anti-herói – Sir Gawain e seu encontro com o enigmático e temível Cavaleiro Verde. Tal história inspirou uma interessante versão cinematográfica, lançada recentemente em circuito de tela grande e que agora chega ao streaming da Amazon Prime.
Intitulado “The Green Knight”, ou “A Lenda do Cavaleiro Verde” na versão brasileira, o longa do cineasta David Lowery traz um grande elenco e imagens hipnotizantes, permitindo certas liberdades poéticas do diretor com a história, como ausência de duelos épicos que sugerem o poema e que são próprios das adaptações das lendas do Rei Arthur. No entanto, é fiel aos simbolismos arquetípicos que compõem a chamada Jornada do Herói, ou melhor, a jornada da individuação necessária a cada ser humano, como determinava Jung em sua obra.
O mote da história: um Cavaleiro Verde – um ser monstruoso com aspecto de árvore – aparece na corte de Arthur, no dia de Natal, e propõe um jogo: desafia qualquer homem a golpeá-lo com seu machado e então, depois de um ano, irá encontrá-lo na Capela Verde, onde ele retribuirá o “favor”. Sir Gawain aceita o desafio e, com o machado, remove a cabeça do sinistro cavaleiro. Assustadoramente, o cavaleiro não morre e sai andando com a cabeça em mãos. E dá a entender, gargalhando, que aguardará a retribuição de Gawain no ano seguinte.
Como bem observou o psicanalista junguiano brasileiro Marcos di Santis, os contos arturianos são claramente influenciados pela religião cristã, incorporando temas como o Santo Graal (o cálice da Santa Ceia de Cristo) e a Lança do Destino (arma que perfurou o tórax de Jesus), mas sem excluir elementos do paganismo celta – druidas e seres mágicos da natureza, por exemplo, como a Dama do Lago. Santis frisa que outro grande estudioso dos mitos, Heinrich Zimmer, em seu “A Conquista Psicológica do Mal”, já reforçara a ligação do arquétipo heroico de Gawain do poema com o mesmo enfrentamento de limiar da morte de personagens bíblicos, como o rei Gilgamesh, e gregos, como Héracles (ou Hércules).
Sob a ótica junguiana, é possível perceber no poema de Gawain, de autor medieval ainda desconhecido, algumas semelhanças de outro personagem da bíblia cristã – Jacó, principalmente, ao lermos o interessante livro “O Homem que Lutou com Deus”, do analista junguiano americano John A. Sanford. Segundo ele, Jacó, em seu processo final de individuação – o grande objetivo de cada ser, para a psicologia analítica – teve que enfrentar uma criatura noturna, o “Desconhecido”, que seria a sombra do arquétipo da totalidade (que os religiosos atribuem como Deus). Essa poderosa face sombria desta totalidade (conhecida como Self, para Jung) também se apresenta na luta contra Jacó como a própria Morte, tal é a letalidade do desafio contra essa força absoluta. Assim como Jacó, Gawain precisa enfrentar o indestrutível Cavaleiro Verde em seu jogo enigmático, mesmo que isso custe sua vida. Só assim será digno de suceder o rei Arthur, seu tio.
Assim como o Cavaleiro Vermelho deve ser vencido, em outro conto popular da Távola Redonda, do casto Parsifal, para superar sua jornada heroica até o Castelo do Graal, Gawain deve vencer seu Cavaleiro Verde para se tornar rei. O cavaleiro terrível, em nosso processo de individuação, é a sombra a ser vencida em nosso interior psíquico, para que morram nossos apegos do Ego e se amplie verdadeiramente a consciência (o rei e sua coroação) até o Self. Morrer para renascer. A sombra cavalheiresca que derrotamos nesse embate interior, não desaparece, mas se integra à “luz”, para uma totalidade final, sem dualismos.
Ainda sob a ótica do herói Parsifal – que curiosamente é salvo justamente por Gawain em uma de suas histórias – há uma interessante análise de sua luta contra o Cavaleiro Vermelho, no livro do analista Robert A. Johnson “He”, sobre o universo masculino: “Visto pelo ângulo do descontrole da agressividade, o Cavaleiro Vermelho é a sombra da masculinidade, o negativo, o lado potencialmente destrutivo. Para realmente tornar-se um homem, a personalidade-sombra precisa ser trabalhada, não pode ser reprimida, pois ele necessita do poder masculino de sua sombra-Cavaleiro-Vermelho para abrir caminho no mundo adulto e tornar-se um vencedor. A questão é fazer seu ego forte o suficiente para não ser vencido pela ira”.
Outra semelhança da história de Gawain com a de Jacó é o necessário “rebaixamento” da soberba do herói na individuação – um por ser sucessor legítimo do rei e outro por ser dono do legado espiritual da família – para que a inflação do ego não os tome e os afastem mais da consciência do Self. Coincidentemente – ou não – em suas jornadas, Gawain, numa floresta, e Jacó, num deserto, passam por sofrimentos que os humilham e rebaixam seu egocentrismo.
É verdade que há diferenças já que Jacó sofre com as privações do deserto e é enganado pelo tio Labão, enquanto Gawain é roubado, humilhado e abandonado sem roupas por três ladrões que são irmãos. Mas, ainda no livro de Sanford, há a história bíblica da individuação de José, filho do mesmo Jacó, que é também castigado pela arrogância ao ser roubado pelos próprios irmãos e vendido como escravo. Leve semelhança? Finalmente, vale lembrar que tanto Gawain como Jacó, precisam executar um último ato sublime de humildade – o primeiro, abaixando a cabeça para o golpe do Cavaleiro Verde, enquanto o segundo, inclinando-a sete vezes para o perdão do irado irmão Esaú.
Amor de mãe
O complexo materno, o qual o herói precisa se libertar para completar a jornada de individuação, é também um tema em comum entre as histórias de Jacó e Gawain. O primeiro é o preferido da mãe Rebeca, que o mima em comparação ao primogênito Esaú, costurando suas roupas e dando total atenção a ele em casa. O segundo também é criado só pela mãe, que costura suas roupas e chega até a preparar um “cinto mágico” para que ele volte ileso do destino moral contra o Cavaleiro Verde. Curiosamente, tal cinto tem forte simbolismo durante o filme e se mostra um apego de proteção materna que o impede de seu amadurecimento masculino, da real coragem de herói.
O rei Arthur, faz seu papel de supraconsciência. Repreende Gawain quando ele não atende seu chamado – que podemos fazer uma analogia com a etapa da jornada do herói conhecida como O Chamado. Gawain, se mostra realmente, no início, alguém longe do ideal de honra do cavaleiro merecedor da sucessão real. “Você é um cavaleiro? ”, pergunta a apaixonada noiva Essel. “Ainda não”, responde Gawain. “Não estou pronto”.
No início da história, vemos Gawain na bebedeira no bordel, mesmo após o episódio do jogo com Cavaleiro Verde. Pouco antes, durante o desafio, recebe emprestada a lendária espada Excalibur de Arthur para o combate com o Verde – um empoderamento fálico –, mas acaba usando o machado do oponente (sombra) para a execução. “Eu o conheço, mas não o reconheço”, diz Arthur. Mais que a cobrança literal de amadurecimento do sobrinho de sangue, o rei representa a consciência, simbolismo da alquimia psicológica, que se mostra como objetivo na individuação de Gawain, mas que ainda o interdita pela imaturidade do ego. “Mas agora é Natal e eu desejo construir pontes”, diz o rei, em seguida, simbolizando que é preciso renascer pela ponte da transcendência que une consciente e inconsciente.
A Ânima sombria e o Arquétipo da Grande Mãe
Gawain passa por testes para desviá-lo do destino final de sua jornada. Além do assalto e humilhação pelos três irmãos assaltantes, o herói é seduzido em um castelo pela dama de vermelho (The Lady) que não só o faz quebrar o código de honra de cavaleiro (de “desonrar” uma dama) como também tenta, junto com o lorde do castelo (que também o seduz mais tarde, em vão), convencê-lo que é inútil seu sacrifício no encontro com o Cavaleiro Verde. Há também uma senhora velha na mesma casa, que aparenta estar cega com os olhos vendados, e parece alertá-lo de que está se desviando ali da jornada. Uma figura próxima do arquétipo da Velha Sábia. Ela toca a cabeça de Gawain e em seguida seu próprio coração, sinalizando o caminho da razão e da intuição como saída daquele lugar de apegos instintuais.
Assim como nossos fantasmas interiores que criam dúvidas em nossa jornada, o lorde pergunta ao herói sobre sua missão na Capela Verde: “O que você espera ganhar?”. Gawain responde: “Honra. É por isso que um cavaleiro faz”. O lorde finaliza: “Voltará para casa um homem mudado, um homem honrado? Eu gostaria de poder ver seu novo Eu. Mas talvez sentiremos falta de nosso velho amigo, da nossa diversão e de nossos jogos”.
Neste momento do filme, a sedutora dama de vermelho tece falas reflexivas sobre a razão de a criatura ser chamada de Cavaleiro Verde, que parece denotar sua natureza dualista de Sombra/Self. “Por que você acha que ele é verde? Ele nasceu assim? Porque ele não é desta terra. Mas o verde é a cor da terra das coisas vivas. E da podridão”, divaga a dama. “Enquanto saímos procurando pelo vermelho, vem o verde. Vermelho é a cor da luxúria. Mas o verde é o que a luxúria deixa para trás, no coração, no ventre. O verde é o que resta quando o ardor diminui, quando a paixão morre, quando nós morremos também. O musgo que cobre a lápide”, acrescenta.
Em “Romance of the Grail: The Magic and Mystery of Arthurian Myth” (ainda não publicado no Brasil), Joseph Campbell aponta semelhanças arquetípicas das tentações sofridas por Gawain no jogo “da luxúria pela vida e do medo da morte” com as mesmas tentações enfrentadas por Buda. “O que você tem aqui nessas aventuras de cavaleiros são aventuras espirituais e os testes são aqueles de luxúria e medo. Gawain não sucumbiu à tentação de Kāma, o deus do Desejo, e sentiu um pouco de medo à beira da morte (o deus Māra). Ele era destemido, mas não sem culpa. Afinal, ele era humano e é isso que o mantém no mundo, pode-se dizer ”, analisa o mitólogo.
Esse herói humano e imperfeito descrito por Campbell, que sucumbe às tentações da Dama de vermelho, uma ânima ainda no aspecto sombrio (curiosamente com a feição idêntica de sua noiva Essel), mostra também, após o ato de masturbação, o quanto ainda está preso ao complexo materno ao receber dela, surpreendentemente, um cinto mágico de proteção igual ao feito por sua mãe, que havia sido arrancado pelos ladrões.
Outro importante encontro com o mundo matriarcal, desta vez em momento anterior, ocorre simbolicamente quando avista um povo gigante de mulheres que caminham com seus bebês no colo, uma cena magnífica que inevitavelmente nos remete ao encontro com o arquétipo da Grande Mãe, pelo qual Gawain procura acolhimento e orientação na jornada de privações. Neste momento, uma pequena raposa que o acompanha, se comunica com as mães gigantes por meio de seu regougar característico e é correspondida com sons selvagens semelhantes. Um encontro espiritual dos instintos primitivos de Gawain (a raposa) com a mãe Natureza que nutre todos os seres.
A raposa, a força dos instintos
Como lembra a analista junguiana Marie-Louise von Franz, em “Puer Aeternus”, a raposa, na alegoria cristã, é um símbolo de fé, de percepção pela audição do mundo invisível, assim como a famosa personagem de “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, que diz: “O essencial é invisível para os olhos”. Se a raposa se mostra no longa como força desses instintos ancestrais, que o acompanha e o orienta na Natureza, ela também se mostra, ambivalentemente, limitadora ao tentar convencer Gawain, comunicando-se desta vez por fala humana, a não atravessar as águas do riacho (simbolismo do mundo do inconsciente) para enfrentar seu destino na capela verde. É o medo instintivo da morte que o espera no outro lado do rio.
Gawain resolve não seguir o aviso da raposa e a afugenta, com raiva. Persiste nele o código de honra dos cavaleiros, de cumprir o prometido no jogo com o Cavaleiro Verde, e talvez motivado pelo enunciado do fantasma de uma menina, que ele ajudou, dias antes, a recuperar a cabeça decepada e jogada num lago (novamente ás águas redentoras do renascer do herói). “O Cavaleiro Verde é alguém que você conhece”, diz a menina morta, antes de voltar a ser esqueleto e mostrar-lhe o machado reavido para a missão.
Gawain parece incentivado com o enunciado da fantasma, mas ainda inconsciente do real significado, de que a luta é com alguém que ele conhece, mas não “reconhece” assim como o rei sugeriu. Como só perceberá no final, após uma interessante visão de um futuro sombrio para a nação de um soberano covarde que foge do destino, o Cavaleiro Verde é ele mesmo, em sua forma sombria. E, para ser o rei legítimo, da Consciência Superior, percebe que não basta derrotar a sombra, é preciso se submeter a ela, para integrá-la com coragem, “perdendo a cabeça” dos apegos egoicos.
Antes de sucumbir ao golpe, Gawain arranca o cinto mágico, que o mantinha falsamente protegido à sua condição de Puer Aeternus, limitado de seu amadurecimento masculino.
“Muito bem, meu bravo cavaleiro. Agora, lá se vai sua cabeça!”, diz sorrindo, satisfeito, o Cavaleiro Verde na cena final. Lição aprendida. Assim se completava o processo de individuação de Gawain.
*Fernando Porto Fernandes é psicanalista de abordagem junguiana e escritor. Trabalhou no jornalismo impresso, produzindo textos para jornais e revistas. Atualmente faz atendimento clínico e é autor do livro “Morte, Biografia Não Autorizada”, com o qual faz palestras sobre o tema “Pequenos e Grandes Lutos de Nossa Vida”. Contato pelo e-mail: [email protected]