Devoradores dos sentidos

Três filmes exaltam o conflito entre a realidade externa e o mundo interior, a partir da luta contra nossos demônios pessoais. Coincidência ou não, os essenciais sentidos humanos são os elementos protagonistas de cada longa.

“Não ouça o mal”. “Não fale o mal”. “Não veja o mal”. Mundialmente conhecida, a lenda dos “Três Macacos Sábios” – símbolos que ornam um templo do século 17, na cidade japonesa de Nikko –, poderia se encaixar perfeitamente na formação casual de uma trilogia de filmes: “Hush” (lançado em 2016, ainda disponível na Netflix e dirigido por Mike Flanagan), “Um Lugar Perigoso” (ou “A Quiet Place”, de John Krasinski em 2018 e oferecido no Telecine) e, finalmente, “Bird Box” (disponível desde o final de 2018 na Netflix e dirigido por Susanne Bier).

"Bird Box": a negação da realidade externa
“Bird Box”: a negação da realidade externa

Enquanto a falta de audição de uma escritora, Maddie (Kate Siegel), em “Hush”, coloca sua vida em risco, dentro de um jogo sádico de um psicopata, o som nas bocas dos personagens de “Um Lugar Perigoso” é uma sentença de morte executada por monstros alienígenas.  Já em “Bird Box”, um simples olhar para as criaturas perseguidoras leva à loucura e, consequentemente, ao suicídio a qualquer um da população. Neste último longa, a cética personagem de Sandra Bullock lidera a resistência de um pequeno grupo de olhos vendados.

Os diretores negaram, em entrevistas, inspiração, plágio ou estratégia combinada do tema dos sentidos humanos – principalmente na comparação entre “Um Lugar Perigoso” e “Bird Box”, lançados no mesmo ano, que obrigou Susanne Bier a rechaçar, em entrevistas, qualquer “carona” de seu filme no sucesso do primeiro.  Coincidência (algo incomum em Hollywood) ou não, o fato é que os três longas merecem ser vistos e o olhar psicanalítico é irresistível nos contextos simbólicos apresentados. Vale um aviso: a análise a seguir pode conter spoilers dos filmes; portanto é recomendável assisti-los primeiro caso a pessoa se incomode por saber antes de tais detalhes.

“Um Lugar Silencioso”: reprimidos por um Superego devorador

Sentir para aprender

O filósofo Aristóteles (384-322 a.C.) já exaltava a importância da experiência dos sentidos humanos para o aprendizado da vida, divergindo da teoria do mundo das ideias do mestre Platão, ao afirmar: “Nada está no intelecto sem antes ter passado pelos sentidos”.  E na relação de cada ser humano com o “outro” é impossível interagir sem que haja experiências sensíveis – ou, pelo menos da maioria funcional dos cinco sentidos.  Já Sigmund Freud, que centralizou suas teorias na sexualidade, deixou claro que a busca dos prazeres humanos não é apenas explicitamente sexual, mas por meio das experiências dos sentidos.

Os cinco sentidos também receberam destaque na psicologia analítica de Carl G. Jung, que as reuniu na chamada função tipológica “sensação”, classificando todas como experiências conscientes produzidas pelos órgãos sensoriais para serem interiorizadas: cheiros, visões, sons, paladares etc. É por meio das experiências sensoriais que o ser humano cria sua realidade própria do mundo e a contrapõe ao seu mundo interior, o inconsciente.

Os três filmes citados mostram, então, ameaças a este necessário equilíbrio entre percepções externas e realidade interior. Em “Hush”, Maddie – surda-muda desde os 13 anos por causa de uma meningite – é desafiada ao extremo por uma sombra ameaçadora à sua deficiência do escutar – no caso, um psicopata que se diverte com um jogo torturante de atacá-la, aos poucos, justamente pela não percepção do som de aproximação à sua volta.  A escuta de Maddie não é limitada apenas fisicamente, mas também é o “não escutar” do afeto de seu ex-namorado que a procura incessantemente para uma reconciliação.

Inflada pelo orgulho, a escritora se recusa a “escutar” o coração, a voz da alma para o amor verdadeiro e, consequentemente, a reconciliação com o masculino. Esta resistência de “não ouvir” e “não ver” (as mensagens no celular) o ex-amante acarretará, no desenrolar da trama, em uma pulsão mortal com suas piores consequências, a partir da chegada de um outro masculino – sombrio e perverso. 

"Hush":  o "não escutar" da personagem vai muito além da deficiência auditiva
“Hush”: o “não escutar” da personagem vai muito além da deficiência auditiva

Punidos pelo som

O som também é elemento importante de outro filme, “Um Lugar Silencioso”, só que desta vez como um pecado a ser punido por “superegos” devoradores. A família protagonista substitui, então, as vozes proibidas por gestos manuais da linguagem “libras” dos deficientes auditivos. Não é difícil fazer uma analogia desses monstros rastreadores de manifestações vocais com a sociedade atual – sempre ameaçada de censura por um Superego coletivo e autoritário, cada vez mais atuante no planeta. Ou também podemos ver tais monstros “executores” encarnados nas personas de usuários de redes sociais, muitas vezes escondidos em perfis falsos, que atacam, humilham e caluniam todas as pessoas que se manifestam contrárias às suas opiniões.

Além disso, os monstros alienígenas de “A Quiet Place” (título original) vão além em sua ação predatória à fala dos humanos e punem qualquer ação sonora – passos fortes, queda de objetos, música, brinquedos barulhentos etc. As criaturas podem ser associadas até, analiticamente, a egos tomados por uma inflação narcisista que “não querem ver” a origem verdadeira das manifestações sonoras – imagem representada no longa pela literalidade de suas cegueiras físicas – ou coletivamente, como bem observou a psicanalista Eliana Alcauza, para uma imagem arquetípica junguiana da mãe devoradora, a face sombria do complexo materno que oprime e sufoca os filhos que se atrevem a manifestarem individualidade no mundo externo. Curiosamente, é uma criança e um bebê, em idades tradicionalmente dominadas pelas forças instintivas (ID) e menos controladas pelas autoridades paternas, que comprometem o pacto de silêncio e a segurança da família.

Finalmente, chegamos ao filme que representa bem o terceiro macaco sábio do mito japonês: “Não Veja o Mal”. O suspense “Bird Box” é de criaturas, não vistas fisicamente, que dominam a mente de quem se atreve a olhá-las e fazem com que essas pessoas comuns vejam algo que as atormenta de maneira insuportável, a ponto de se suicidarem. O filme dá pistas de que o “algo” se trata de demônios pessoais do inconsciente da vítima, como um trauma ou mal psíquico que atormenta sua mente. Do ponto de vista freudiano, o monstro do filme traz à visão da pessoa a coisa proibida ou censurável que é trancada e oculta no “calabouço” inconsciente de sua realidade externa. Quando esse conteúdo indesejável vem à tona de forma abrupta e o ego não está estruturado para suportá-lo, o conflito é inevitável; a fragmentação culmina em um surto psicótico e, consequentemente, a fuga pelo suicídio do sofrimento insustentável. Não é por acaso que os loucos de “Bird Box” não só suportam ver as criaturas como também se tornam seus aliados na tentativa de forçar as pessoas “normais” para essa visão terrível do inconsciente. O mal, neste caso, é pulsão de morte para uns e pulsão de vida para outros (os insanos).

Em um aspecto coletivo, a protagonista de “Bird Box” e o restante do grupo de sobrevivente se recusam a ver (enfrentar) e assimilar a trágica realidade do mundo exterior. Esse endurecimento e fuga de Malorie (a atriz Sandra Bullock) chega ao extremo a ponto de negar sua própria maternidade e de arrebatar dos dois filhos (uma, adotada da amiga morta) o sentido de existência externa. Prova dessa couraça emocional está na não-nomeação das crianças, chamadas apenas de “garoto” e “garota”. A salvação final da mãe e dos filhos está em um pequeno refúgio, protegido por milhares de pássaros (símbolos do automorfismo e da transformação alquímica). É lá que o grupo se salva de seus fantasmas pessoais. Um lugar de alienação, protegido por deficientes visuais – de uma cegueira seletiva que os blinda contra a identificação projetiva do mal pulsional coletivo. Todos presos em um paraíso pequeno e particular: a “caixa de pássaros”, do título. É o preço pago para a sanidade e para a esperança de um mundo melhor.

Fernando Porto Fernandes é psicanalista e escritor. Trabalhou por 30 anos no jornalismo impresso, produzindo textos para jornais e revistas. É autor do livro “Morte, Biografia Não Autorizada” e faz palestras sobre o tema “Pequenos e Grandes Lutos de Nossa Vida”. Contato pelos e-mails: [email protected] ou [email protected]

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